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Priscila Pamela Santos

Quisera o Brasil estivesse no caminho da França

Ódio à liberdade feminina e dogmas religiosos balizam debate sobre o aborto

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Priscila Pamela Santos

Advogada criminal e mestranda em direitos humanos (USP), é vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e integrante do Grupo Prerrogativas

Em 1791, a francesa Olympe de Gouges publicou, em oposição à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: "A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais não podem ser fundadas a não ser na utilidade comum". Por defender os direitos das mulheres, liberdade e igualdade de gênero, em meio à Revolução Francesa, foi morta pelo tribunal jacobino.

Suas ideias, todavia, inspiraram muitas que vieram depois dela, como a escritora inglesa Mary Wollstonecraft, que escreveu "Reivindicação dos Direitos da Mulher" (1792), considerado o texto fundador do feminismo como movimento organizado. E, na mesma linha, já no século 20, a filósofa francesa Simone de Beauvoir, autora de "O Segundo Sexo" (1949), obra essencial para se entender a construção social da desigualdade e a violência de gênero.

Mulheres em defesa do direito ao aborto reunidas em Paris em dia de votação histórica - Dimitar Dilkoff/AFP - AFP

Em 1974, a ministra da Saúde da França, Simone Veil, discursou na Assembleia Nacional durante a discussão para a legalização do aborto. A ministra, primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu, defendeu a descriminalização do aborto como uma questão de justiça social e saúde pública e, na ocasião, o aborto legal foi aprovado.

Desde então, o Parlamento francês promoveu nove reformas, todas para ampliar o exercício do direito ao aborto. Porém, após decisão da Suprema Corte Norte-Americana, no caso Roe vs. Wade, que revogou o aborto legal assegurado desde 1973, acendeu-se na França o alerta para evitar alterações legislativas retrógradas semelhantes ao acontecido nos EUA, e a constitucionalização foi o caminho adotado.

Na última segunda-feira (4), o Congresso francês reconheceu o direito constitucional ao aborto, em mais uma vitória da luta histórica dos movimentos feministas do país. Ao cravar no texto constitucional a proteção da liberdade da mulher por meio do direito ao aborto, o Parlamento francês impede que sua mitigação se dê por votação simples, sendo necessária emenda constitucional para qualquer nova alteração, cujo processo de aprovação é mais complexo —ainda mais na França, em que a Constituição sofreu apenas 25 emendas.

Quisera o Brasil estivesse no mesmo caminho! Aqui, pelo contrário, há diversos projetos de lei voltados a reforçar a criminalização de mulheres em decorrência da interrupção voluntária da gravidez. Projetos que vão desde a equiparação do aborto a crime hediondo à obrigatoriedade de escuta dos batimentos do feto. Nada semelhante se nota em relação aos homens que deixam de reconhecer seus filhos, ou que, quando o fazem, deixam de prestar o auxílio necessário ao seu desenvolvimento.

Entre 2012 e 2022, 483 mulheres brasileiras morreram em hospitais da rede pública em decorrência do aborto clandestino, a maioria negra, menor de 14 anos e moradora de periferias —ou seja, meninas e mulheres que vivem em situação de total vulnerabilidade, o que denota que a prática está voltada à precarização e à feminização da pobreza e não a um problema criminal.

De todo modo, a descriminalização do aborto está sendo discutida na ADPF 442, no Supremo Tribunal Federal, cuja função contramajoritária é a defesa dos vulneráveis. Espera-se de nossa Suprema Corte uma decisão pautada na Constituição, que já traz os preceitos nos quais a legalidade da interrupção da gravidez se sustenta, como o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da igualdade (art. 5º, I) e da não discriminação (art. 3º IV), a vedação à tortura e a qualquer tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III), além da proteção do direito à saúde (arts. 6º e 196) e ao planejamento familiar (art. 226).

As premissas constitucionais para a descriminalização do aborto no Brasil estão postas e com base nelas é que o STF precisa analisar a ADPF 442, já que, infelizmente, parece-nos que o ódio à liberdade das mulheres sob o falacioso argumento da fé em um Deus perverso é o que tem balizado o direito e a política no Congresso Nacional —portanto, não há grandes expectativas de mudanças legislativas virem de lá.

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