Bolsonaro acirrou tensões em vez de buscar acordos para governar; entenda

Centrão garantiu proteção contra impeachment, mas não avanço de agenda no Legislativo

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São Paulo

Nenhum dos presidentes que governaram o Brasil desde o fim da ditadura militar (1964-1985) e a redemocratização do país testou tanto os limites impostos ao exercício dos seus poderes como Jair Bolsonaro (PL), e nenhum encontrou tantos obstáculos no caminho.

Suas ações acirraram tensões entre os Poderes e provocaram retrocessos em várias áreas de política pública, mas seu desempenho pode ser considerado decepcionante se comparado com os resultados alcançados pelos antecessores no exercício das prerrogativas do cargo.

Sem base de apoio sólida no Congresso, ele viu grande parte de suas iniciativas naufragar no Legislativo ou ser barrada no Supremo Tribunal Federal. Mas o acordo com o centrão o ajudou a se livrar do risco de impeachment e aumentar gastos na corrida pela reeleição.

Este é o primeiro de uma série de três textos que buscam explicar como as instituições democráticas funcionaram no governo Bolsonaro.

Homem branco de cabelos lisos e castanhos, de terno e gravata, sentado sozinho, com os braços cruzados, na mesa principal de um evento. Há placas com seu nome e os de outros participantes na mesa. Ao fundo, uma Bandeira do Brasil e um painel azul.
O presidente da República, Jair Bolsonaro, durante evento no Palácio do Planalto. - Gabriela Biló - 6.jun.2022/Folhapress

Bolsonaro usou bem os instrumentos que o chefe do Executivo tem para governar e promover políticas de seu interesse? Não. Ao contrário do que fizeram seus antecessores, Bolsonaro decidiu não montar uma coalizão partidária que lhe assegurasse maioria no Congresso para aprovar projetos e mudar leis. Ele alegou que não pretendia negociar cargos e verbas em troca de apoio como no passado.

Por que ele precisaria fazer isso? Quando Bolsonaro tomou posse como presidente, o Congresso estava muito fragmentado, sem nenhuma força política dominante. Seu partido, o antigo PSL, tinha uma das maiores bancadas na Câmara dos Deputados, mas era minoritário e só teria maioria aliando-se com outras siglas.

Bolsonaro deixou o PSL antes de completar o primeiro ano no cargo e filiou-se a outra legenda, o PL, somente no fim do ano passado, para concorrer à reeleição agora. O PSL fundiu-se com o antigo DEM para formar a União Brasil, que hoje tem a quarta maior bancada.

Na corrida presidencial, Bolsonaro e o PL deverão ter o apoio do PP e dos Republicanos. As três siglas reúnem hoje 175 dos 513 deputados federais. Com um terço dos votos no plenário, o bloco é minoritário. Atualmente, há 23 partidos com representação na Câmara.

Mas Bolsonaro não fez um acordo com o centrão? Sim. Em 2021, após a eleição de Arthur Lira (PP-AL) para a presidência da Câmara, Bolsonaro nomeou o senador Ciro Nogueira (PP-PI) como ministro da Casa Civil e entregou aos novos aliados o controle de vários órgãos com verbas disponíveis para obras em estados e municípios.

Além disso, Bolsonaro permitiu que a cúpula do Congresso assumisse controle quase total sobre a distribuição de recursos reservados pelo Orçamento para emendas parlamentares, que são usadas pelos políticos para beneficiar seus redutos eleitorais, com pouca transparência.

O principal objetivo de Bolsonaro foi garantir proteção contra o risco de um processo de impeachment. Como presidente da Câmara, Lira barrou mais de uma centena de denúncias apresentadas contra Bolsonaro por crimes de responsabilidade, a maioria durante a pandemia.

O Congresso impediu Bolsonaro de governar? Não. Antes do acerto com o centrão, a falta de articulação política do governo com os líderes partidários barrou várias iniciativas. Mas uma ampla reforma da Previdência foi aprovada em 2019. Coube ao então presidente da Câmara, Rodrigo Maia (PSDB-RJ), liderar as negociações.

Propostas ambiciosas formuladas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, incluindo uma reforma tributária, novas regras para o funcionalismo e uma emenda constitucional que permitiria reduzir gastos sociais obrigatórios não avançaram e acabaram abandonadas pelo próprio governo.

"Bolsonaro é um presidente inepto que usa mal as prerrogativas que tem", afirma a cientista política Argelina Figueiredo, professora da Universidade Estadual do Rio. "Uma coalizão minoritária, sem liderança do presidente, é incapaz de promover uma agenda consistente."

A taxa de sucesso de Bolsonaro no Legislativo é muito baixa. Dados compilados pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) mostram que somente 37% de suas propostas foram aprovadas, contando medidas provisórias e projetos de lei apresentados pelo Executivo.

Por esse critério, o desempenho de Bolsonaro é pior do que o da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em seu segundo mandato, abreviado por uma profunda crise política que levou ao seu impeachment, ou o de Michel Temer (MDB), o presidente mais impopular da história recente.

Em três anos e meio de governo, Bolsonaro usou seus poderes para impor 224 vetos ao sancionar leis aprovadas pelo Legislativo, um recorde desde a redemocratização. Mas o Congresso derrubou 33% dos vetos, taxa de rejeição maior do que a encontrada pelos outros mandatários.

O que ele conseguiu fazer no Congresso? No início da pandemia, medidas importantes para o enfrentamento da Covid foram tomadas por iniciativa dos parlamentares, como a ampliação do auxílio emergencial concedido a pessoas economicamente vulneráveis e o socorro financeiro a estados e municípios.

Após o acordo com o centrão, várias propostas de interesse do governo foram aprovadas, como a autonomia do Banco Central, a privatização da Eletrobras, o Auxílio Brasil e projetos que permitiram ampliar gastos e criar novos benefícios sociais às vésperas das eleições deste ano.

A emenda constitucional que declarou estado de emergência por causa dos preços dos combustíveis, o que permitiu remover barreiras legais para a criação dos benefícios temporários, foi aprovada pelas duas Casas do Congresso em duas semanas, com o apoio de ampla maioria.

Propostas pelas quais a direita bolsonarista se mobilizou nunca tiveram apoio suficiente para avançar no Congresso, como o voto impresso e o projeto que reduzia a idade de aposentadoria dos ministros do STF para abrir vagas que Bolsonaro pudesse preencher.

Poderia ter sido diferente? Estimativa baseada em pesquisas conduzidas com parlamentares por César Zucco, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Timothy Power, da Universidade de Oxford, indica que 55% das cadeiras da Câmara são ocupadas por partidos que se identificam com a direita.

Para o cientista político Fernando Limongi, da FGV, isso significa que Bolsonaro teria conseguido formar facilmente uma coalizão majoritária para promover sua agenda no Legislativo se tivesse optado por esse caminho, que poderia ter assegurado maior estabilidade a seu governo.

O STF impediu Bolsonaro de governar? Não, mas os ministros do tribunal barraram medidas que julgaram ilegais. Isso ocorreu principalmente no primeiro ano da pandemia, quando o presidente procurou minar esforços de estados e municípios no combate ao coronavírus, opondo-se a medidas de isolamento social.

Segundo levantamento de um grupo de pesquisadores liderado por Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP e colunista da Folha, foram ajuizadas 114 ações contra atos do governo no STF em 2020, mais do que o dobro do ano anterior. A maioria teve resposta rápida da corte.

A principal decisão do Supremo foi a que impediu Bolsonaro de interferir nas ações de estados e municípios, ao declarar que eles tinham autonomia para tomar medidas contra a Covid. Nada impedia que Bolsonaro tentasse coordenar suas ações, mas o presidente nunca o fez.

Outras decisões impediram a veiculação de uma campanha publicitária do governo contra o isolamento social na quarentena, obrigaram o governo a divulgar dados epidemiológicos e cobraram a definição de políticas para indígenas e quilombolas e planos para a vacinação.

Atos de Bolsonaro em outras áreas também foram barrados. O STF suspendeu três portarias e trechos de quatro decretos editados pelo presidente como parte de sua política para ampliar o acesso dos brasileiros a armas. Três decretos da área ambiental foram derrubados.

"Bolsonaro fez muita coisa com instrumentos que prescindem de diálogo com o Legislativo para ter efeito imediato, como decretos e medidas provisórias", diz Eloísa Machado de Almeida, da FGV Direito SP. "O controle desses atos dependeu quase exclusivamente do STF."

Essas decisões impediram que Bolsonaro conseguisse o que queria? Nem sempre. No caso das armas, as decisões que suspenderam atos de Bolsonaro são provisórias. Nenhuma das 14 ações movidas contra o governo teve julgamento definitivo. As medidas que seguem válidas permitiram aumentar muito o número de armas em circulação no país.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, há 2,9 milhões de armas particulares registradas na Polícia Federal e no Exército. Atiradores esportivos, caçadores e colecionadores registraram 280 mil novas armas só no ano passado, o triplo do que foi registrado em 2018.

"O Supremo segurou o possível, mas não bastou", afirma a advogada Isabel Figueiredo, consultora do Fórum. "O Congresso teve sua competência legislativa usurpada, porque os decretos contrariam o Estatuto do Desarmamento, mas não houve reação."

Na área ambiental, um dos decretos que foram derrubados pelo Supremo paralisou por dois anos o Fundo Amazônia, que recebeu no passado recursos da Noruega e da Alemanha para financiar projetos de desenvolvimento sustentável e tem R$ 3,2 bilhões parados em seus cofres.

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