Confronto com Bolsonaro colocou imagem do Supremo em xeque; entenda

Tribunal barrou iniciativas do governo e abriu inquéritos para apurar crimes do presidente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Na convenção partidária que oficializou a candidatura à reeleição, há duas semanas, o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou a atacar os ministros do Supremo Tribunal Federal e convocou seus seguidores a ir às ruas protestar contra a corte no 7 de Setembro.

"Esses poucos surdos de capa preta têm que entender o que é a voz do povo", discursou o presidente. Não foi a primeira vez. Desde a chegada de Bolsonaro ao Palácio do Planalto, seus ataques contra o tribunal se tornaram mais frequentes e agressivos.

O STF barrou várias iniciativas do governo, abriu quatro inquéritos para investigar crimes de que o presidente foi acusado e tem resistido às tentativas de desacreditar o processo eleitoral, mas o confronto com o bolsonarismo provocou desgaste na imagem da instituição.

Este é o último de uma série de três artigos que buscam explicar como as instituições democráticas funcionaram até aqui no governo Bolsonaro.

Dois homens brancos vestidos de terno escuro e camisa branca vistos de lado, em pé, se cumprimentando. O primeiro é mais velho e tem cabelos castanhos lisos. O outro é completamente calvo. Ao fundo, bandeiras e uma cortina amarela
O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta o ministro Alexandre de Moraes, do STF, durante cerimônia em Brasília - Sergio Lima - 19.mai.22/AFP

Por que Bolsonaro ataca constantemente os ministros do STF?

O tribunal se opôs a várias iniciativas do presidente nos últimos anos. Durante a pandemia de coronavírus, garantiu autonomia a estados e municípios no enfrentamento da Covid, impediu o governo federal de sabotar suas políticas e cobrou a definição de planos para vacinar a população.

Os ministros da corte também suspenderam medidas tomadas por Bolsonaro para facilitar o acesso a armas, anularam decretos que buscavam enfraquecer políticas ambientais e o impediram de nomear um amigo de sua família como diretor-geral da Polícia Federal.

Além disso, o tribunal abriu quatro inquéritos para investigar o presidente, que ainda estão em andamento. Outras investigações, sobre ataques às instituições democráticas e grupos que espalham desinformação na internet, têm aliados de Bolsonaro como alvos principais.

A relação entre Bolsonaro e o STF foi tensa desde o início do governo?

Na campanha de 2018, Bolsonaro falou em ampliar o número de integrantes do tribunal, de 11 para 21, o que lhe permitiria nomear dez novos juízes. Ele nunca levou a ideia adiante e desautorizou o filho Eduardo quando veio a público um vídeo em que atacou o Supremo.

No primeiro ano do novo governo, o ministro Dias Toffoli, então presidente da corte, propôs um pacto entre os Poderes para dar impulso às reformas da Previdência e do sistema tributário. Criticada por outros magistrados e líderes do Congresso, a sugestão foi esquecida.

Em abril de 2020, no início da pandemia, Bolsonaro convocou manifestações contra o Congresso e o STF e discursou em uma delas, na frente do quartel-general do Exército, em Brasília. O inquérito aberto para investigar os atos antidemocráticos foi arquivado em 2021.

No ano passado, o presidente iniciou uma campanha para desacreditar o Tribunal Superior Eleitoral e as urnas eletrônicas. Em manifestações no 7 de Setembro, atacou os integrantes do Supremo e ameaçou descumprir suas decisões. Após um breve recuo, retomou a ofensiva.

É só retórica ou ele tomou alguma medida concreta?

Bolsonaro apresentou ao Senado pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes, que conduz no STF os inquéritos sobre o presidente e seus aliados e assumirá a presidência do TSE neste mês. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), rejeitou o pedido.

Em abril deste ano, o Supremo condenou o deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) a oito anos e nove meses de prisão em razão de seus ataques ao tribunal. Bolsonaro concedeu perdão ao aliado, livrando-o da prisão, mas falta o STF definir se ele deve perder o mandato e ficar inelegível mesmo assim.

Um mês depois, o presidente apresentou ao tribunal notícia-crime contra Moraes. Sorteado para analisar o pedido, o ministro Toffoli rejeitou a representação. Bolsonaro pediu então que o caso seja levado ao plenário da corte, mas não teve resposta.

O que há contra Bolsonaro nos inquéritos conduzidos pelo STF?

O primeiro foi aberto quando o ex-ministro da Justiça Sergio Moro deixou o governo e acusou o presidente de tentar interferir na PF para garantir proteção aos filhos. A polícia concluiu que não há nada que incrimine Bolsonaro, mas o caso ainda está em análise no Supremo.

No inquérito que investiga os ataques contra o processo eleitoral, a PF apontou evidências de que militares e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) levantaram informações para sustentar a ofensiva de Bolsonaro contra as urnas, sem que houvesse prova de fraude.

Em outro caso, que trata de um ataque hacker ao TSE, a polícia concluiu que Bolsonaro cometeu crime ao vazar informações sobre o incidente quando as investigações estavam sob sigilo. A Procuradoria-Geral da República pediu arquivamento do inquérito, mas Moraes rejeitou o pedido.

E o inquérito das fake news?

Ele foi aberto em 2019 por determinação de Toffoli para investigar ameaças sofridas por integrantes do STF, com base num dispositivo do regimento interno do tribunal que o autoriza a apurar infrações ocorridas na sede ou em dependências do Supremo.

Conforme a interpretação dada por Toffoli ao dispositivo, qualquer ofensa a um ministro da corte deve ser tratada como se tivesse sido dirigida à instituição ou proferida no prédio em que eles trabalham. Moraes conduz o inquérito, que tramita sob sigilo.

Moraes mandou prender Silveira e bloquear contas de bolsonaristas nas redes sociais, além de impor censura a uma reportagem desfavorável a Toffoli e suspender investigações da Receita Federal que atingiram as mulheres de Gilmar Mendes e Toffoli.

Bolsonaro tornou-se alvo desse inquérito no ano passado, a pedido do ministro Luís Roberto Barroso, então presidente do TSE, após uma transmissão ao vivo na internet em que disseminou mentiras e desinformação para levantar suspeitas sobre as urnas e atacar os juízes.

A Procuradoria-Geral da República foi contra a abertura do inquérito no início, mas passou a ser consultada por Moraes antes de diligências e outras medidas após a chegada de Augusto Aras à chefia do Ministério Público Federal. As opiniões do procurador têm sido ignoradas muitas vezes.

O que pode acontecer com Bolsonaro?

O presidente só pode ser processado e julgado por um crime no STF se o procurador-geral da República pedir e a Câmara dos Deputados autorizar. Como Aras e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), são aliados de Bolsonaro, dificilmente algo acontecerá com ele.

Se não for reeleito, o presidente perderá o direito a foro especial no Supremo, e os inquéritos em andamento deverão ser transferidos para instâncias inferiores do Judiciário. Bolsonaro poderá então ser processado sem a necessidade de autorização de outras instituições.

"Os inquéritos não terminarão antes da eleição, até por falta de clareza no STF sobre a melhor forma de encerrá-los", diz Emilio Peluso Neder Meyer, professor da Universidade Federal de Minas Gerais. "Isso deve retardar a responsabilização do presidente por seus crimes."

Os dois ministros escolhidos pelo presidente fazem o que ele quer no STF?

Nem sempre. O primeiro indicado, Kassio Nunes Marques, causou tumulto na pandemia ao liberar cultos religiosos das restrições impostas pelas medidas de isolamento social. Proferida individualmente num sábado, a decisão foi derrubada pelo plenário do tribunal dias depois.

Nunes Marques foi o único a absolver Silveira no STF. O outro ministro nomeado pelo presidente, André Mendonça, condenou o deputado. Os dois jogaram juntos para suspender a cassação do deputado estadual Fernando Francischini (União-PR), logo depois mantida pela corte.

Se for reeleito, Bolsonaro terá oportunidade de nomear mais dois ministros do Supremo, com a aposentadoria dos ministros Ricardo Lewandowski e Rosa Weber. Os dois completarão 75 anos de idade durante o próximo mandato presidencial e terão que deixar o tribunal.

Bolsonaro teve apoio no Congresso contra o STF e o TSE?

Não. Uma proposta de emenda constitucional que reduzia a idade de aposentadoria dos ministros, de 75 para 70 anos, com o objetivo de abrir duas vagas no tribunal para Bolsonaro preencher, foi aceita numa comissão da Câmara, mas não teve apoio para chegar ao plenário.

Outra proposta, que determinava a impressão de um comprovante para cada voto digitado na urna eletrônica, também naufragou. Deputados do centrão cogitaram uma emenda que daria ao Congresso a prerrogativa de rever decisões do STF, mas abortaram a ideia.

A ofensiva bolsonarista afetou a credibilidade do tribunal?

Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas mostra que 42% da população achava o STF confiável no início de 2021. A confiança superava a exibida em 2017, quando 24% pensavam assim, e era maior do que a depositada na Presidência da República (29%) e no Congresso (12%).

Segundo o Datafolha, no fim de julho 33% dos brasileiros reprovavam a atuação do tribunal, e só 23% a aprovavam. Pesquisas anteriores do instituto mostram que a aprovação cresceu com a pandemia, diminuiu em meados do ano passado e se manteve estável desde então.

"O tribunal se colocou como um contraponto importante diante do radicalismo do governo e ganhou apoio da sociedade com isso", diz Diego Arguelhes, professor do Insper. "Mas muitas pessoas percebem a atuação do STF como pragmática, e isso é ruim para sua credibilidade."

Para 49% dos brasileiros, segundo a pesquisa da FGV, os ministros agem muitas vezes como políticos, não como juízes. No dia a dia da corte, decisões individuais dos ministros são comuns, às vezes para evitar a formação de maiorias contrárias às suas opiniões no plenário.

Integrantes do tribunal participam ativamente do debate público, dão entrevistas e mantêm encontros regulares com políticos. Em junho, o ministro Gilmar Mendes foi homenageado em um jantar na casa de Lira e defendeu o diálogo com Bolsonaro, que estava presente.

O STF tem interferido em decisões do Congresso?

No ano passado, quando Pacheco tentou barrar a comissão parlamentar de inquérito criada pelo Senado para investigar a atuação do governo na pandemia, o tribunal atendeu a um pedido dos partidos de oposição e determinou sua instalação.

Em outros casos, os ministros têm sido cautelosos. Quando a oposição pediu que o Supremo estabelecesse um prazo para que o presidente da Câmara desse andamento aos pedidos de impeachment apresentados contra Bolsonaro, o tribunal decidiu que não podia interferir.

Quando os partidos questionaram o uso de emendas parlamentares para favorecer aliados do governo, a ministra Rosa Weber cobrou transparência na divulgação dos beneficiários das verbas do Orçamento, mas não interferiu nos critérios do centrão para divisão do dinheiro.

"O tribunal se vê sob ameaça e paga um preço político enorme por atuar em múltiplas frentes", afirma Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP e colunista da Folha. "Uma certa autocontenção pode ser importante para proteger sua autoridade quando essa fase passar."

Dez decisões do STF que contrariaram o governo Bolsonaro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.