Aos 90, pesquisadora pioneira da física no Brasil quer inspirar meninas

Anna Endler conta sua trajetória em biografia lançada em 2021

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Ao ingressar na faculdade na década de 1950, aos 18 anos, a cientista Anna Endler, uma das primeiras mulheres a pesquisar física no Brasil, era uma das poucas alunas matriculadas no curso.

Quase 70 anos depois, Anna, hoje com 90 anos, decidiu contar sua trajetória em uma autobiografia para mostrar detalhes que muitos amigos e familiares não conheciam –e espera que a história inspire meninas a seguir na área das ciências exatas.

Anna no condomínio onde vive, na Gávea, zona sul do Rio - Lucas Seixas/Folhapress

"Como mulher, não posso dizer que fui maltratada ou mal vista pelos homens. Mas fui ignorada, então eu escrevi essa biografia para mostrar tudo o que eu fiz e que eu achava que ninguém sabia", diz.

Intitulado "Perseverança" (ed. CBPF; 98 págs), o livro foi lançado em 2021, um ano após Anna ter recebido o título de pesquisadora emérita do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas), por sua contribuição ao instituto. A obra está disponível para download aqui.

Anna enveredou pela física graças ao pai, que incentivava seu raciocínio lógico desde pequena, e ao irmão, que gostava de lhe contar sobre os livros de ciência que lia.

Para a cientista, o preconceito em relação à produção de mulheres vem mudando na comunidade científica –mas ainda há um caminho a ser percorrido.

"A alegria que sentimos e a satisfação de vencer uma batalha, não tem dinheiro que pague. É isso que eu quero para as meninas [que desejam seguir nesse campo]", diz.

Quando começou no ensino superior –à época seu curso fazia parte da Faculdade Nacional de Filosofia, que mais tarde se transformou na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)–, conta, a física nuclear era uma área de estudos que atraía muito interesse internacional após os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Foi nesse segmento que ela decidiu construir sua carreira, mais precisamente no campo de física das partículas –que estuda a composição da matéria e como seus elementos interagem entre si.

Anna teve como inspiração o trabalho do pesquisador César Lattes (1924-2005), físico brasileiro que ganhou notoriedade dentro e fora do país por sua participação na detecção da partícula méson pi, que mantém o núcleo atômico coeso. Trata-se de uma das descobertas mais importantes da física no século 20.

"Estudei muito, não foi fácil. Mas o curso da faculdade era excelente e tive muita sorte em ter tido professores maravilhosos. Eles eram a nata da física do Brasil."

Lattes foi um dos seus professores, na disciplina de física nuclear. Além disso, ela teve contato com o pesquisador quando começou a estagiar no CBPF, ainda durante a faculdade, em 1952. O centro, que nasceu em 1949, no Rio de Janeiro, teve Lattes como um dos fundadores.

Anna permaneceu ligada ao instituto até 2001, quando completou 70 anos e se aposentou. Na entidade, voltou-se ao trabalho de pesquisa no departamento de emulsões nucleares, técnica utilizada na investigação de partículas do átomo.

A pesquisadora compartilhava descobertas e dificuldades com o marido, o matemático alemão Otto Endler. Eles se conheceram durante uma extensão universitária que Anna fez no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), em São José dos Campos, São Paulo, onde Otto havia sido convidado para ministrar aulas.

"Ele compreendia o que acontecia comigo, fomos muito unidos. Otto me dava incentivo e dizia 'não desista, é assim mesmo, nem tudo corre como a gente quer.'" Otto morreu em 1988, em decorrência de uma embolia pulmonar.

Em 1959, a pesquisadora foi viver na Alemanha, terra natal de Otto, onde foi possível avançar na carreira e nas pesquisas. Durante sua estadia no país, manteve vínculo com o CBPF, aplicando no instituto brasileiro o conhecimento adquirido na Europa. Nos anos seguintes, Anna e Otto alternaram temporadas entre o Rio e o país europeu.

Foi lá que ela relata ter ocorrido uma de suas maiores conquistas: a aprovação no doutorado, que obteve em 1968 pela Universidade de Bonn, cidade que fica no oeste do país.

Imagina, uma mulher com um trabalho debaixo do braço querendo fazer doutorado na Alemanha? Não era algo normal. Eu recebi uns foras de alemães

Anna Endler

Cientista

Para receber esse título, ela passou meses se preparando e precisou fazer todos os exames em alemão.
No livro, Anna relata que o processo não transcorreu sem sobressaltos. Alguns professores do colegiado que aprovariam a defesa de sua tese se recusaram a recebê-la por preconceito, afirma ela.

"Imagina, uma mulher com um trabalho debaixo do braço querendo fazer doutorado na Alemanha? Não era algo normal. Eu recebi uns foras de alemães", diz Anna.

Foi com a ajuda de um professor que pesquisava o mesmo assunto que ela, radiação cósmica (os núcleos atômicos que penetram a Terra e chocam-se com moléculas da atmosfera) que ela conseguiu submeter sua tese à banca –e foi, então, aprovada.

"Os alemães dão muito valor ao título de doutorado. É considerado um [pesquisador] de outro nível", afirma.

Outra grande conquista na trajetória profissional, diz Anna, foi a colaboração internacional que ela organizou entre o CBPF e o Cern (Centro Europeu de Pesquisas Nucleares) para realizar experimentos com câmaras de bolha, recipiente que detecta partículas eletricamente carregadas.

Mas, antes da parceria se concretizar, Anna passou por mais um momento de frustração. "Eu tentei ter contato com um brasileiro que já estava no Cern fazendo experiências e queria que ele me ajudasse com contatos. Mas ele não quis nem me receber. Isso me deixou muito sentida."

Com ajuda do marido, conseguiu contornar a situação por meio da conexão com outro grupo de pesquisadores.

O resultado foi uma ação em conjunto entre CBPF e o centro europeu que produziu um estudo sobre como ocorre a criação das partículas e como elas interagem. A cientista registra essa como uma das suas maiores realizações profissionais.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.