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Patrícia Valim

Quem foi a menina de 10 anos que escreveu um dos principais panfletos pró-Independência

Urânia Vanério publicou 'Lamentos de uma baiana', que denuncia violência de portugueses em Salvador

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Patrícia Valim

Professora do Departamento de história da UFBA (Universidade Federal da Bahia) em cooperação técnica com a Ufop (Universidade Federal de Ouro Preto)

[RESUMO] Aos 10, Urânia Vanério publicou um dos principais panfletos políticos em defesa da Independência, mas a autoria do texto permaneceu desconhecida até aqui. Indignada com os combates entre tropas portuguesas e baianas que tomaram Salvador em 1822, Vanério transformou a revolta em versos e legou um documento que nos convida a romper com a herança de violência e desigualdade do passado colonial.

O silenciamento das lutas das mulheres do tempo ido é uma das formas mais perversas de violência de gênero, atualizada por meio de dispositivos disciplinares que interferem nos processos de subjetivação feminina no presente.

Além do apagamento dessas mulheres, há duas outras formas mais sutis de silenciamento histórico. A primeira é esvaziar suas lutas, ligando-as ao protagonismo de homens com quem tiveram algum laço. A segunda é masculinizando-as.

envelope branco sobre fundo amarelo com imagens representativas da independencia da bahia, principalemente mulheres como maria felipa, maria quitéria e joana angélica. além da imagem de uma igreja, convento da lapa e do general madeira de mello
Ilustração - Silvis

Uma das formas de romper com a retirada das mulheres da política e da história é mostrar os gritos contidos no apagamento daquelas que subverteram os destinos definidos pelo patriarcado e ocuparam a esfera pública.

Quantos sonhos estão contidos no silenciamento das manifestações políticas das mulheres durante as lutas pela independência do Brasil nas várias províncias? Essa pergunta foi um dos pontos de partida de uma pesquisa sobre um dos principais panfletos políticos escritos no calor dos acontecimentos, em 1822, cuja autoria é revelada neste texto.

O panfleto "Lamentos de uma baiana", segundo os autores da coletânea "Guerra Literária", é o mais "revoltado e dolorido protesto contra a ação das tropas do general Madeira de Mello, vazado em linguagem simples e direta". Escrito entre 19 e 21 de fevereiro de 1822, o panfleto é de autoria de Urânia Vanério, uma menina de apenas 10 anos, e foi publicado no Rio de Janeiro por Ângelo da Costa Ferreira, que indicou a idade errada da garota.

Um dos primeiros versos questiona: "Há de perder-se a Bahia/ Para governar Madeira?/ Ter poderio, Excelência/ Hão de os Baianos sofrer/ Dos Lusos tanta insolência?".

Após o anúncio de uma nova junta de governo na Bahia comandada pelo brigadeiro Madeira de Mello, que se declarou fiel a Portugal entre 10 e 11 de fevereiro de 1822, vários tumultos se alastraram em Salvador, nas proximidades do forte de São Pedro, Mercês, praça da Piedade e campo da Pólvora, com os soldados portugueses combatendo as tropas baianas, invadindo casas e atacando civis.

Da janela do seu quarto, provavelmente em uma casa perto da praça da Piedade, indignada com os mortos e feridos nas lutas entre portugueses e baianos, Urânia relatou sua revolta em versos por temer os rumos daquela guerra e de sua própria família, sobretudo após o assassinato da abadessa Sóror Joana Angélica.

"Justos céus, como é possível/ Ficar impune a maldade/ De monstros, que não perdoam/ Nem mesmo o sexo, ou a idade [...]/ Justos Céus, até manchada/ Das clausuras o recato/ Sacras virgens esmagadas/ Do marcial aparato!! [...]/ Justos Céus, quando os conventos/ Foram assim insultados/ Quanto mais não sofreriam/ Os cidadãos sossegados?"

Filha única de Euzebio e Angélica Vanério, um casal de portugueses versados em várias línguas, Urânia nasceu em 14 de dezembro de 1811 em Salvador. Criada em um ambiente com livros, periódicos, instrumentos musicais e muita poesia, ela recebeu uma educação distinta da maioria das meninas da época. Foi alfabetizada em várias línguas pela mãe, que a preparou para o mundo das letras.

Acabou despertando a simpatia das famílias mais ricas da sociedade soteropolitana não só pela beleza, mas também pelo domínio de idiomas e pela habilidade para desenho, bordado e música, além de disposição para o trabalho no Colégio Desejo da Ciência, que seus pais tinham fundado no atual bairro da Barroquinha, na capital baiana.

Urânia cresceu acompanhando a luta de seus pais por reconhecimento social e econômico naquela sociedade extremamente hierarquizada pelo escravismo, situação agravada pelo sentimento antilusitano durante o acirramento das lutas pela independência. Ela criticou duramente a monarquia portuguesa e seus aliados.

"Justos céus, tal Carta Régia/ Foi a nossa desventura/ Que males não produziu/ Quantos males não augura! [...]/ Justos céus, não é factível/ Possa alguém acreditar/ A troco d’uma excelência/ Tantos desastres causar", escreveu.

Em seguida, suplicou em seu "Lamento": "Justos céus, ver desterrados/ Patrícios, irmãos, parentes/ Presos, mortos e feridos/ Mil cidadãos inocentes".

De acordo com as informações obtidas em seu necrológio, de autoria do militar e poeta Francisco Muniz Barreto, publicado no Correio Sergipense em 16 de janeiro de 1850, Urânia expressou seu medo em versos em um momento de muita emoção pela "desgraça da pátria", com o aumento da violência das tropas portuguesas e prisões de moradores de Salvador.

"Justos Céus, onde o direito/ Pessoal, de propriedade/ Se entre nós impera/ A vil arbitrariedade [...]/ Justos céus, onde o direito/ De que sem culpa formada/ Não seria as vis prisões/ Triste vítima arrastada?"

Quando seu pai entrou no seu quarto e lhe perguntou por que chorava, ela respondeu: "Se meu pai fosse brasileiro, também chorara". Euzébio a abraçou e respondeu: "Teu pai sempre será brasileiro".

Além da crítica à violência de Madeira de Mello contra os baianos, Urânia fez questão de reforçar no panfleto sua adesão à causa da independência ao tempo em que repudiou o acirramento dos conflitos entre baianos e sergipanos causados pela Carta Régia de 8 de julho de 1820, quando dom João 6º decretou a emancipação política de Sergipe Del Rey à condição de uma capitania independente da Bahia depois de mais de dois séculos de subalternidade, em agradecimento pela participação de alguns sergipanos na violenta repressão dos líderes da Revolução Pernambucana de 1817.

Na época, isso significou um duro golpe na economia baiana, pois Sergipe contava com mais de 200 engenhos e alguns comerciantes de grosso trato que financiavam o tráfico de pessoas escravizadas e o comércio de açúcar na região.

Com o retorno de dom João 6º a Portugal, a emancipação de Sergipe Del Rey foi contestada por senhores de engenho da Bahia, que acabaram impedindo, até fevereiro de 1821, a posse do governador nomeado. Com o acirramento das lutas pela independência na Bahia, líderes políticos do agreste e do sertão sergipanos tomaram posição em defesa da emancipação política de Sergipe e, a partir de 1822, pela independência do Brasil.

Não parece ter sido por outra razão que Urânia criticou esse conflito ao final do panfleto: "Justos céus, jamais se viu/ Entre irmãos, tão crua guerra/ Nunca os déspotas obraram/ Tão negra ação sobre a Terra [...]/ Justos céus, e a tal cáfila/ Inda se jacta de egrégia/ Matando incautos irmãos/ Na guerra da Carta Régia? [...]/ Justos céus, se as nossas Cortes/ Não punem tanta maldade/ Ou não haverão [sic] baianos/ Ou nunca mais tal cidade".

Meses depois da escrita de "Lamentos de uma baiana", ela foi para o Recôncavo com a família porque seu pai seguiu o Conselho Interino de Governo na cidade de Cachoeira como oficial civil e secretário do comandante em chefe da Divisão de Pirajá, Joaquim Pires de Carvalho Albuquerque.

No ano seguinte, junto com a comitiva do general Labatut, responsável pela expulsão das tropas portuguesas em Salvador no celebrado 2 de julho de 1823, a família de Urânia se mudou para Sergipe, onde viveu momentos de tensão em razão de divergências políticas entre o grupo de seu pai e do então secretário Antônio Pereira Rebouças, que ocuparam dezenas de páginas do periódico O Grito da Razão e culminaram na prisão de seu pai, sob a alegação de desordem política.

Com seu pai enviado para o Forte de São Pedro, Urânia e sua mãe voltaram a morar em Salvador. A partir de 1824, Angélica Vanério se organizou para a retomada das aulas no antigo colégio da família, contando com a ajuda de sua filha.

Em 28 de abril de 1825, o periódico Diário Fluminense noticiou algo pouco usual para uma menina daquela época: Urânia tinha solicitado ao imperador, em 21 de abril, uma licença para a abertura de uma escola de ensino mútuo na Bahia. O pedido foi aceito e remetido ao governador ao tempo em que o pai de Urânia foi solto.

O episódio demonstra as estratégias com as quais ela se valeu, a partir do privilégio da educação que teve em casa, para se engajar politicamente em um momento crucial, lutar pela sobrevivência da família e conquistar admiração e espaço em uma sociedade patriarcal. Tanto que, em 11 de dezembro de 1827, o Diário do Rio de Janeiro publicou o anúncio da obra "Triumpho do Patriotismo, Novela Americana", vendida à época por 200 réis.

A informação de que "D. Urânia Vanério oferece uma obra às senhoras brasileiras" sugere duas pistas importantes sobre a trajetória dessa menina. A primeira é que a obra, e a maneira como foi anunciada, em um periódico da corte, indica provavelmente uma tradução de uma novela americana, o que conferiria a ela o posto de primeira tradutora do país.

A segunda pista está relacionada ao pronome de tratamento "dona", indicando que Urânia continuou publicando seus escritos mesmo depois de casada e não acrescentou o sobrenome do ilustre marido à obra. O matrimônio com Felisberto Gomes de Argollo Ferrão, filho de uma das famílias mais ricas e importantes da Bahia, ocorreu em março de 1827, deixando seu pai, endividado, muito feliz.

Urânia e o marido viveram em uma casa grande, com quintal, no bairro dos Barris, em Salvador, enquanto ela lecionava no colégio que fundara com seus pais. Segundo Muniz Barreto, em 22 anos de casamento, eles tiveram 13 filhos (dois provavelmente nasceram mortos).

Ela morreu em decorrência de uma infecção no parto de seu último filho, em 3 de dezembro de 1849, e foi enterrada com pompa na igreja da Santa Casa da Misericórdia, local destinado às famílias de prestígio. Suas filhas seguiram a carreira da mãe, lecionando no mesmo colégio. Seus filhos tornaram-se negociantes e políticos com alguma projeção.

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Igreja da Lapa, em Salvador, com a imagem de Joana Angélica à direita - Rafael Martins/Folhapress

O país idealizado por Urânia no processo de nossa independência também foi construído com suas publicações e seu trabalho, denunciando injustiças e ocupando espaços como tantas mulheres fizeram na história deste país.

Ao lado de Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa, protagonistas das lutas pela independência política na Bahia, Urânia merece lugar de destaque na nossa história.

Seus gritos silenciados e que vieram a público em forma de lamentos são um convite para a nossa maior luta neste bicentenário: rompemos com a dominação portuguesa, mas ainda precisamos romper com a herança da violência e das desigualdades intrínsecas à colonização.

Texto integra série Perfis da Independência

Este texto é a quinta publicação da série Perfis da Independência, que destaca nomes relevantes —muito conhecidos ou não— do período da emancipação do Brasil em relação a Portugal. O texto sobre a imperatriz Leopoldina deu início à série em fevereiro deste ano, seguido dos artigos sobre Hipólito da Costa, o aventureiro escocês Thomas Cochrane, Bárbara Pereira de Alencar, revolucionária e primeira presa política do Brasil, e José Bonifácio, o principal ministro de dom Pedro 1º.

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