Guerra da Ucrânia e inflação nublam otimismo do verão pós-Covid na Europa

Apesar de ausência de russos e de chineses, especialistas afirmam acreditar em recuperação do setor do turismo

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Milão

Ainda antes da guerra, quando o primeiro pacote de sanções contra Moscou foi anunciado como tentativa de dissuasão, Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia, fez aos russos uma provocação nas redes sociais: "Chega de compras em Milão, festas em Saint-Tropez, diamantes na Antuérpia". Pouco depois, ele apagou o post, considerado deselegante. No dia seguinte, a Rússia invadiu a Ucrânia.

Passados três meses, o turismo na Europa dá sinais de que a alta temporada do verão no hemisfério Norte, com pico entre julho e agosto, pode ser a mais virtuosa dos últimos dois anos de pandemia —mas a ausência dos russos, como efeito da guerra e de mais quatro pacotes de sanções, será sentida.

A referência de Borrell a cidades de Itália, França e Bélgica dá a dimensão do estereótipo desses turistas na Europa. Apesar de não estarem entre os mais numerosos, os russos ocupavam a sétima posição entre os que mais gastavam em viagens internacionais, com € 32 bilhões em 2019, antes da crise sanitária.

Turistas aglomerados na pirâmide do museu do Louvre, em Paris - 29.abr.22/AFP

Como consequência das sanções, o tráfego aéreo entre Rússia e UE foi suspenso pelas duas partes, portos estão fechados para embarcações russas, bancos russos foram desconectados do sistema financeiro e restrições a viagem e bens atingem mais de 1.100 pessoas e entidades no país.

O impacto da guerra no turismo europeu afeta com mais força a porção oriental do continente. Há lugares que estão sendo menos procurados por viajantes internacionais devido à proximidade geográfica com o conflito —como Bulgária, Croácia, Hungria e Polônia— e outros mais dependentes dos viajantes russos.

Entre esses estão, segundo a Organização Mundial do Turismo, Chipre, Montenegro, Letônia, Finlândia, Estônia e Lituânia. Turistas do país de Vladimir Putin representavam ao menos 10% do total antes da pandemia nesses lugares, mas no Chipre a taxa chegava a 20%. Em destinos maiores, como Espanha, França e Itália, o percentual não ultrapassava os 3%, mas o que conta é a forma como o dinheiro é gasto.

Em 2019, a Itália hospedou quase 1,8 milhão de russos, responsáveis por 5,8 milhões de diárias —2,6% do total de presença estrangeira, dez vezes menos que o maior grupo, os alemães. Em gastos, porém, eles ficam em quarto lugar, atrás apenas de japoneses, chineses e canadenses. Em média, cada russo gastou, em 2018, € 145 (R$ 736, na cotação mais recente) por dia na Itália. Além disso, mais de 40% das estadias desse grupo foram registradas em hotéis de luxo, de acordo com o instituto de estatística italiano.

Segundo Michele Costabile, professor da Universidade Luiss de Roma especializado em comportamento econômico, o impacto será concentrado em pontos específicos do segmento de luxo, como nas praias de Portofino, Capri e Taormina. "Hotéis, restaurantes e balneários vão sentir a ausência dos russos, que têm grande capacidade de gastos. E a Sardenha deve ser a área italiana que vai mais sofrer", afirma.

A ilha no Mediterrâneo é um dos destinos preferidos dos russos. Ali, no início da guerra, uma mansão do oligarca Alisher Usmanov avaliada em € 17 milhões (R$ 86 milhões), na famosa Costa Esmeralda, foi apreendida como parte das sanções, assim como seu iate. "Como novos-ricos, esse grupo busca status simbólico no turismo. Gosta de ostentar, com coisas como pirâmide de taças de espumante."

A percepção é parecida na Espanha, diz Juan Gómez, chefe de inteligência de mercado da ForwardKeys, especialista em análise de dados de viagens aéreas. "Eles escolhem cidades específicas e têm hábitos próprios, como não viajar em rotas comerciais, mas com meios privados, como barcos e jatos."

Desde a Páscoa, Veneza vê o volume de viajantes internacionais se aproximar do nível pré-pandêmico, mas a guia Angela Popovici estima que esteja trabalhando só 20% daquilo que costumava até 2019. Há seis anos especializada em atender clientes em russo, ela nota a falta daqueles que moram no país.

"Agora que a Rússia está bloqueada para viagens, para chegar à Europa os cidadãos que têm visto válido têm que fazer escala na Turquia ou nos Emirados Árabes Unidos. Como a viagem ficou mais longa e muito mais cara, não são muitos", conta. "Eles também precisam trazer dinheiro em espécie ou cartões de outros países, devido ao bloqueio aos bancos russos."

Segundo análise da ForwardKeys, a ausência dos russos na Europa não significa que eles tenham deixado de viajar por lazer. Mas, desde a guerra, passaram a priorizar destinos em que foram menos "cancelados", na Ásia e no Oriente Médio, como Sri Lanka, Maldivas, Quirguistão, Turquia e Emirados Árabes.

Um relatório divulgado nesta semana no Fórum Econômico Mundial, em Davos, avalia que a Guerra da Ucrânia representa um novo obstáculo para a recuperação do turismo global. Além das restrições a viagens, o documento destaca interrupções de logística, aumento de preços da energia e problemas em rotas aéreas, como as entre Europa e Ásia, que precisam desviar do espaço aéreo russo.

Apesar disso e da ausência dos chineses, que ainda lidam com as restrições da pandemia, especialistas preveem que a temporada de verão na Europa vá recuperar boa parte do fôlego perdido nos dois últimos anos. As últimas semanas deram bons sinais e, além da demanda interna (77% dos europeus pretendem viajar entre abril e setembro), há o retorno de turistas das Américas e da Austrália.

"A mudança-chave é a estabilidade nas regras e nas restrições de viagens, que permite aos viajantes fazer planos com antecedência. No ano passado, nessa época, ainda eram feitas muitas alterações, e as campanhas de vacinação estavam começando", afirma Gómez, da ForwardKeys.

A expectativa, segundo ele, é a de que o turismo no Mediterrâneo se aproxime dos níveis pré-pandemia, com algumas rotas superando as cifras de 2019, como o fluxo entre EUA e Grécia. "Há uma demanda reprimida nos últimos dois anos, e isso vai superar o impacto negativo da guerra e da inflação."

Despesas em todo o mundo em viagens ao exterior por país de origem

em bilhões de euros, em 2019 (pré-pandemia), segundo o Banco da Itália

  1. China

    227,4

  2. EUA

    136

  3. Alemanha

    82,1

  4. Reino Unido

    63,5

  5. França

    44,8

  6. Austrália

    32,4

  7. Rússia

    32,3

  8. Canadá

    31,1

  9. Coreia do Sul

    28,9

  10. Itália

    27,1

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