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Lincoln Paiva

De 'Sampa' a 'Pânico em SP': o centro e a rotina do caos

No lado de cá da cidade não há pudor ou poder; tudo pode

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Lincoln Paiva

Especialista em gestão de cidades (Poli-USP), é mestre e doutor em arquitetura e urbanismo (FAU-Mackenzie) e morador do centro de São Paulo

Morei em muitas cidades do mundo, todas com problemas sociais, mas nenhuma chegou ao ponto de degradação humana como o centro da maior metrópole da América Latina.

Há alguns meses, eu e minha esposa viemos morar em um edifício histórico na avenida São João, no centro de São Paulo —na contramão de um movimento de esvaziamento de moradores, concomitantemente ao aumento exponencial de moradores em situação de rua.

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Usuários da cracolândia atacam farmácia na avenida São João, no centro de São Paulo - Reprodução/redes sociais

Logo na segunda semana, um bando saqueou uma farmácia bem em frente ao nosso apartamento. Nos dias subsequentes, moradores foram atacados pela "gangue do mata-leão" (quando a vítima é agredida com um golpe, derrubada e despojada) e pela "gangue do roubo de celular com bicicleta", que atuam nas calçadas. Houve ainda um novo saque, desta vez em um mercado situado na esquina mais famosa da cidade, na Ipiranga com a São João.

Esses crimes já foram "normalizados" e ocorrem em série. Atônito, constato tudo pela janela de casa. Aquela cidade que um dia foi carinhosamente conhecida por "Sampa" desapareceu —hoje está mais para "Pânico em SP", da banda punk paulistana Inocentes, dos anos 1980.

A violência de hoje não é nada "discreta". Também não tem nada de "inocente". Na verdade, de "concreto" apenas o medo, nosso companheiro constante.

Homem revira lixo na rua Conselheiro Nébias, no centro de São Paulo - Rubens Cavallari/Folhapress - Folhapress

Entre os vizinhos, os comentários se repetem: a ausência de gestão pública na capital paulista. Onde falta poder público sobram cenas de terror. Sim, moradores transitam em cenários assombrosos de degradação: lixo em abundância espalhado pelas calçadas, proliferação de baratas, ratos, cheiro insuportável de fezes e urina humana. Centenas de pessoas esfarrapadas e seminuas arrastam-se como zumbis por um território em guerra.

A consciência social é só um escombro por onde os vultos perambulam com seus cobertores sujos sobre pilhas de detritos que formam obstáculos para pedestres assustados. Idosos tropeçam nas sarjetas
—impossível definir se são humanos escondidos sob o papelão, se estão vivos ou mortos. A cidadania é incidental; a cidade é uma calamidade. Os sons das bombas, de gás lacrimogêneo, das sirenes dos carros de polícia e dos helicópteros são tão altos quanto os do barulho infernal de um show na noite passada no vale do Anhangabaú, geralmente cercado por infames tapumes.

O futuro é incerto. A única garantia é a continuidade do ciclo de sofrimento. É a sina do paulistano: a certeza da terra arrasada, terra de ninguém. Sobre o lixo, rapazes e moças se drogam, defecam e dormem nas esquinas sem nenhum constrangimento. No lado de cá da cidade não existe pudor, não há poder; tudo pode.

A violência parece ser a regra comum. A vida no centro é uma ofensa diária a todos que acreditam em urbanidade. Tudo isso tem acontecido na superfície, sob o olhar de todos e bem ao lado da prefeitura da cidade mais rica do país. Ou ela não liga, ou não vê, ou não escuta. Ou pode ser ainda pior: não sabe o que fazer.

Não há amor que resista ao descaso. Lamentavelmente, tudo que era lindo está morrendo: o amor, as amizades, a vizinhança, os jardins. Mas, quando a paciência morre, a cidade também morre, como já dizia o professor e urbanista Mike Davis nos anos 1980, antes da cidade de Los Angeles explodir em meio ao caos. Mas ninguém o escutou.

No subterrâneo, moradores estão em pânico, com problemas psicológicos. Sofrem de ansiedade, depressão, isolamento. Têm a sensação de que estamos todos abandonados e por nossa própria sorte —ou azar.

A verdade é que estão matando o centro e dentro dele tudo o que importa: a vida das pessoas e suas histórias, futuros. Está claro que a questão não pode ser resolvida apenas com polícia e meia dúzia de agentes sanitários. São necessários recursos, gente competente e, principalmente, vontade política. O centro precisa ser encarado como prioridade.

Mas não estamos sozinhos. Há neste momento milhares de pessoas resistindo, querendo a volta de um centro vivo, vibrante, participativo. Existe inteligência disposta e capaz de colaborar. Viva o centro, viva a possibilidade de mudança. A palavra de ordem é esperança, mas cabe à gestão pública entrar em ação. Estão esperando o quê?

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