Guimarães Rosa não faz parte do grupo de escritores que sacudiu os rumos da literatura brasileira e escreveu ao mesmo tempo bons livros para adultos e crianças, como foram os casos de Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes e de muitos outros, entre eles também Graciliano Ramos, cuja obra acaba de entrar em domínio público, por exemplo.
Mas isso não quer dizer que o autor de monumentos como "Grande Sertão: Veredas", "Sagarana" e "Corpo de Baile" não tenha cultivado nem preservado um olhar em relação a essa faixa etária. A infância surge na obra rosiana em personagens como Miguilim, de "Campo Geral", mas vai além —aparece nas fabulações, magias, sonoridades e invenções capazes de abrir conversas com as crianças.
Não à toa, sua vida e sua obra têm inspirado com frequência livros ilustrados e para leitores em formação. Um dos mais recentes é "As Fábulas do Fabuloso Fabulista Joãozito", da editora ÔZé, no qual Jacques Fux intercala a biografia de Rosa, a partir de uma cuidadosa e respeitosa pesquisa, e sua obra, usando principalmente "Grande Sertão: Veredas" como condutor da boiada.
Finalista do último prêmio Jabuti na categoria juvenil com "As Coisas de que Não me Lembro, Sou", Fux faz os jovens leitores se embrenharem nas veredas formadas pela literatura do escritor mineiro e se transforma numa espécie de guia por essa linguagem e seus labirintos.
"Mas, não. Não. Não. Não. Não era nada, não. Ninharia. Coisa pouca. Nonada. Mire e veja: Joãozito já estava acostumado a lutar diariamente contra o Diabo e Deus (mesmo que eles não existissem)", diz o texto logo no começo, já com o ritmo, a cadência, os chiados e a embocadura dos livros de Rosa.
É como se passeássemos lentamente por seu sertão e nos perdêssemos às vezes por ele, como ocorre diversas vezes nos romances e contos do escritor. Mas logo Fux nos mostra de novo o curso da estrada e os caminhos para seguir trilhando esse universo cheio de jagunços, buritis e lugares com nomes fantásticos como Liso do Sussuarão, que aparecem também nas ilustrações de Carlos Clémen.
Se Fux faz uma biografia literária de Rosa, Nelson Cruz também brinca com essas fronteiras em "No Longe dos Gerais", livro que já é um clássico contemporâneo da literatura ilustrada brasileira. Lançado pela Cosac Naify em 2004, o título ficou fora de catálogo após o fechamento da editora, em 2015, e voltou agora às prateleiras, também pelas mãos da ÔZé.
Nele, o escritor e ilustrador recria justamente a famosa condução da boiada que cruzou os sertões mineiros em 1952, da qual Guimarães Rosa fez parte e de onde tirou inspirações para as personagens e os conflitos da história que seria publicada quatro anos depois, em 1956.
Para isso, "No Longe dos Gerais" usa um narrador surpreendente. Quem conta a história é um menino, que supostamente teria acompanhado a condução desses bois. Um aprendiz de cerca de nove anos, que conviveu com Rosa e com os outros vaqueiros no toque do rebanho, mas que teria sido apagado pela história. Se não o conhecemos, Cruz o recria.
É o olhar dessa criança que narra a jornada real do escritor pelo sertão e sua gente, com quem atravessou veredas, dormiu em fazendas, despertou antes das cinco da manhã e cavalgou por centenas de quilômetros, sempre no lombo da mula Balalaika e com um caderninho pendurado no pescoço, onde fazia anotações.
Ao revisitar esses lugares, Cruz produziu mais de 200 rascunhos com lápis e caneta, muitos deles publicados na edição, que conta agora com texto revisto e algumas imagens inéditas.
Mas, além desses, Rosa inspirou também uma série de outros livros nos últimos anos, que são boas opções para quem quiser se aventurar num mergulho mais profundo.
A própria ÔZé, que vem se consolidando como a editora mais rosiana para a infância, lançou em 2020 o premiado "Sagatrissuinorana". A história de João Luiz Guimarães e Nelson Cruz venceu o Jabuti de melhor livro do ano em 2021 ao recontar "Os Três Porquinhos" não só com inspiração na linguagem de Guimarães Rosa, mas ecoando ainda as catástrofes mineiras de Brumadinho e Mariana, no rio Doce.
Já "Zoo", originalmente de 2008 e agora no catálogo da Global, faz o casamento de textos poéticos assinados por Rosa com imagens de Roger Mello, único ilustrador brasileiro vencedor do Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. Outro exemplo é "João, Joãozinho, Joãozito", lançado em 2016 pela Galera Junior, em que Claudio Fragata recria a infância do escritor mineiro com altas doses de lirismo e ilustrações de Simone Matias.
Por fim, "Rosa", obra ilustrada de Odilon Moraes lançada pela Olho de Vidro em 2017, parte do famoso conto "A Terceira Margem do Rio" para investigar visualmente temas como a paternidade e a própria costura literária do autor de "Primeiras Estórias".
"Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba", lemos já no fim de "Grande Sertão: Veredas", trecho que aparece em "As Fábulas do Fabuloso Fabulista Joãozito". Só que não é bem assim. Esses livros ilustrados e para a infância são provas. As estórias de Guimarães Rosa não acabam. Encantam-se.
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