Artistas indígenas e negros ganharam força, e museus encolheram em 2020

Apesar das feiras canceladas e das demissões, mercado de arte fez transição bem-sucedida para o virtual

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São Paulo

No dia 5 de agosto, uma das principais avenidas do Brasil foi tomada por um cortejo fúnebre em marcha a ré. Encabeçados por carros funerários, cerca de cem automóveis dirigiram ao contrário num percurso que atravessou a avenida Paulista, em São Paulo, e terminou na porta de um cemitério.

A ação do artista Nuno Ramos com a companhia Teatro da Vertigem era um protesto contra o negacionismo do governo Bolsonaro em relação à Covid-19 e seus cerca de 100 mil mortos àquela altura do ano —sem uma política clara de combate à pandemia, o país andava para trás.

Em retrospecto, o que também andou para trás em muitos aspectos no difícil ano de 2020 foi o setor de artes visuais. Com museus e galerias fechados e feiras de arte suspensas para conter a expansão do coronavírus, o meio encolheu, dentro e fora do Brasil, tendo de demitir em massa e museus foram forçados a vender grandes obras de seus acervos para se sustentar.

O Masp demitiu 21 funcionários, ou 13% do seu quadro, poupando só a área de curadoria, e o Museu Afro Brasil dispensou 23 trabalhadores, quase um terço do total. Já o museu a céu aberto Inhotim, em Minas Gerais, demitiu 84 empregados de todas as suas áreas.

A faca atingiu também as galerias. Um estudo do banco UBS feito com 795 estabelecimentos do tipo em 60 países constatou que, no primeiro semestre do ano, um terço deles havia diminuído de tamanho, demitindo em média quatro funcionários. O Brasil foi o país mais afetado —por aqui, a média de cortes foi de oito empregados nas galerias maiores.

A penúria financeira causada pela pandemia fez com que instituições dos Estados Unidos e do Reino Unido leiloassem ou anunciassem a intenção de vender obras importantes de suas coleções para fazer caixa, privando o público do acesso ao trabalho de grandes mestres.

O Brooklyn Museum, de Nova York, vendeu uma tela do século 16 de Lucas Cranach, o Velho, por US$ 4,2 milhões, ou R$ 24,2 milhões, e a Royal Academy of Art, de Londres, cogita se desfazer de uma escultura de Michelangelo estimada em £ 100 milhões, ou R$ 743 milhões. Na mesma toada, o Baltimore Museum, em Baltimore, nos Estados Unidos, queria vender a tela “Santa Ceia”, de Andy Warhol, mas a pressão contrária foi tão forte que o pregão foi cancelado.

Por aqui, quem teve a sua coleção dizimada foi o Museu de Arte Contemporânea da USP, o MAC. As suas cerca de mil fotografias que contavam a história dessa arte, do século 19 até hoje, foram leiloadas para arrecadar fundos para os credores da massa falida do banco Santos. Embora o pregão tenha sido um sucesso do ponto de vista do leiloeiro e do mercado, ele tirou do público a possibilidade de acessar um dos mais importantes acervos de fotografia do país.

Segundo agentes do mercado de arte, porém, apesar das demissões, os prejuízos parecem ter sido menores do que o previsto no início da pandemia, em março. Então, o cancelamento em série das principais feiras de arte internacionais, entre elas a Tefaf Maastricht, a Art Basel Hong Kong e a brasileira SP-Arte, deixou marchands aflitos —os eventos são responsáveis por 45% do faturamento global do setor, segundo o relatório mais recente do grupo Art Basel.

Mas a transição para o virtual foi assimilada mais rápido do que o esperado. E as galerias não só embarcaram na onda das feiras virtuais, bem mais baratas do que suas alternativas físicas, como também se empenharam na criação de conteúdo online, promovendo visitas a ateliês, bate-papos com artistas e colecionadores e festivais de vídeo. Algumas casas, menores e com um público-alvo mais jovem e acostumado às compras online, disseram inclusive ter batido recordes de venda no período.

Quem mais parece ter sofrido, assim, não é exatamente o mercado, mas as próprias feiras, que podem demorar a recuperar o esplendor com as restrições de viagens internacionais. Também é o caso da SP-Arte, que sai deste ano desgastada depois de um embate público com os galeristas acerca da devolução dos valores investidos na feira presencial cancelada.

Quando se fala da produção artística, o ano foi dos artistas indígenas e negros, na esteira das discussões dos movimentos pós-coloniais. Lá fora, essas discussões ganharam força com os protestos do Black Lives Matter e a derrubada de estátuas de pessoas e eventos ligados à escravidão, ao colonialismo e à segregação racial. A chama dos debates sobre a devolução de artefatos arqueológicos africanos nas coleções de museus europeus também foi reacesa.

Por aqui, artistas indígenas tomariam os principais museus paulistas este ano, em exposições na Pinacoteca, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, e participações na 34ª Bienal de São Paulo. Quando veio o coronavírus, o temor era de que muitas delas fossem suspensas, retrocedendo em relação a um espaço conquistado com dificuldade.

De fato, algumas delas foram bastante adiadas, como a Bienal, remarcada para o ano que vem. Mas não só outras foram mantidas, como uma que chegou a ser cancelada, "Moquém - Surarî: Arte Indígena Contemporânea", parte da programação paralela da Bienal, voltou ao calendário do MAM.

Artistas negros e indígenas também chamaram atenção na espécie de prévia que a Bienal abriu em novembro, num esvaziado pavilhão Ciccillo Matarazzo, no parque Ibirapuera. Suas vozes, muitas vezes indecifráveis, ressoavam pelo prédio de Oscar Niemeyer.

Presenças algo sobrenaturais que, de alguma forma, também pareceram impregnar outras mostras abertas com o relaxamento da quarentena na capital paulista, como a da fotógrafa chilena Páz Errazuriz, que exibe retratos de pessoas tidas como invisíveis no IMS Paulista, ou a do franco-argelino Kader Attia, que encheu o Sesc Pompeia de corpos mutilados.

Talvez fossem os olhos dos visitantes que, depois de sete meses testemunhando milhares de mortes diárias, passaram a ver fantasmas por todo canto. Afinal, como apontaram alguns críticos, a maioria dos museus e espaços culturais reabriu as portas sem maiores reflexões sobre essa pausa forçada —eles simplesmente retomaram as programações das vésperas da SP-Arte.

Mas vale também resgatar uma fala do diretor artístico da Pinacoteca, Jochen Volz, numa entrevista a este jornal em junho. "Não acho que os artistas vão ilustrar o coronavírus", disse. "Para mim, é muito claro que a produção de muitos deles tinha antecipado o que está acontecendo agora."

*

Cancelado
Causou barulho o cancelamento de uma megamostra com pinturas dos encapuzados da Ku Klux Klan feitas nos anos 1960 pelo pintor canadense Philip Guston, que excursionaria por quatro museus dos Estados Unidos e do Reino Unido. Diretores das instituições parecem ter julgado o público sensibilizado pelos protestos do Black Lives Matter incapaz de pôr sua arte em contexto —eles afirmaram que o evento foi adiado “até o momento em que acharmos que a mensagem de justiça social e racial que está no centro do trabalho de Philip Guston possa ser mais claramente interpretada”.

ETs?
No final de novembro, uma coluna prateada e de aparência metálica com cerca de três metros de altura foi avistada em meio aos cânions de rocha vermelha do deserto do estado americano de Utah. Depois, obras similares apareceram na Romênia e na Califórnia, também nos Estados Unidos. Enquanto alguns enxergaram naquilo uma clara mensagem alienígena —ou pelo menos um tributo ao filme '2001: Uma Odisseia no Espaço', em que aparece um objeto semelhante—, outros tinham certeza de que era uma obra do escultor minimalista americano John McCracken. A autoria acabou assumida pelo coletivo The Most Famous Artist.

Sem bolo e guaraná
Depois de um 2019 dedicado a Leonardo Da Vinci, era para 2020 ser o ano de outro renascentista, Raffaello Sanzio, o Rafael, morto há 500 anos. Mas o coronavírus suspendeu a realização de boa parte dos eventos planejados em torno da data, prejudicando uma potencial redescoberta do artista, um tanto obscuro no imaginário popular. Outra que teve as celebrações afetadas pela pandemia foi a neoconcretista Lygia Clark, que teve os cem anos de seu nascimento celebrados neste ano.

Beirute desmoronada
Centenas de obras se perderam com as explosões que atingiram o porto de Beirute no início de agosto, guardadas em ao menos cinco galerias de arte que ficavam próximas ao armazém que pegou fogo e provocou o acidente. Oito museus da capital libanesa sofreram danos em graus diversos. Artistas e galeristas ficaram em choque, tentando se reconstruir numa cidade que virou um canteiro de obras.

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