Descrição de chapéu The New York Times

Flagelo do Haiti tem raízes também em invasão pelos EUA orientada por Wall Street

Investigação do New York Times revê influência de instituições financeiras americanas sobre Forças Armadas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Numa tarde sonolenta de dezembro, oito fuzileiros navais americanos entraram na sede do banco nacional haitiano e saíram levando US$ 500 mil em ouro em caixotes de madeira. Levaram o butim para o litoral de carroça, passando por soldados americanos à paisana. Carregaram as caixas em botes e as levaram rapidamente para a canhoneira que os aguardava.

Poucos dias depois o ouro já estava no cofre de um banco de Wall Street.

A operação aconteceu em 1914 e foi precursora da invasão em grande escala do Haiti. Tropas americanas tomaram conta do país no verão seguinte e o governaram com força bruta por 19 anos, numa das mais longas ocupações militares na história americana. Mesmo depois de os soldados deixarem o país, em 1934, financistas americanos continuaram a controlar o erário haitiano por mais 13 anos.

A invasão foi necessária, disseram os EUA. A justificativa foi de que o país era tão miserável e instável que, se os americanos não assumissem o controle, alguma outra potência o faria. O secretário de Estado Robert Lansing descreveu a ocupação como uma missão civilizadora para acabar com a "anarquia, selvageria e opressão" no Haiti, convencido de que "a raça africana é desprovida de qualquer capacidade de organização política", como ele escreveu.

Fuzileiros americanos nos arredores de Porto Príncipe na época da invasão americana do Haiti - 29.fev.1920/The New York Times

Décadas de correspondência diplomática, relatórios e documentos examinados pelo jornal The New York Times mostram que por trás disso havia outro ator empurrando os EUA a intervir e assumir controle do Haiti pela riqueza que o país prometia: Wall Street e o banco que mais tarde se tornaria o Citigroup.

Sob pressão forte do National City Bank, os americanos empurraram franceses e se tornaram a potência dominante no Haiti por décadas. Dissolveram o Parlamento sob a mira de armas, mataram milhares de pessoas, controlaram as finanças do país enviando grande parte de seus ganhos a banqueiros em Nova York. Deixaram um país tão pobre que agricultores —que ajudavam a gerar lucros— frequentemente viviam com uma dieta "próxima do nível da morte por inanição", segundo a ONU mostrou em 1949.

"Eu ajudei a fazer de Haiti e Cuba um lugar decente para os rapazes do National City Bank recolherem receita", escreveu em 1935 o general Smedley Butler, líder da força americana no Haiti.

Por mais de um século o país tem sido qualificado como um caso perdido, um lugar tão miserável, endividado, carente e sem lei que precisa ser salvo constantemente. O assassinato do presidente em seu próprio quarto de dormir, os sequestros na capital, as ondas de migrantes, tudo isso aponta para um país mergulhado numa espiral aparentemente interminável de desespero que as grandes potências mundiais não têm conseguido consertar.

A análise do NYT mostra quanto da miséria do Haiti foi provocada pelo mundo externo —e com que frequência a intervenção tem sido retratada como ajuda.

Quando as forças americanas chegaram, no verão de 1915, o país já havia passado mais de meio século entregando grandes parcelas de seus ganhos parcos à França. Embora os haitianos tivessem derrubado seus escravizadores franceses, declarando sua independência em 1804, navios de guerra franceses voltaram décadas mais tarde, exigindo montantes espantosos de dinheiro, sob pena de guerra.

O Haiti tornou-se o primeiro e único país onde descendentes de pessoas escravizadas pagaram às famílias de seus antigos senhores por gerações, prejudicando desde o início sua capacidade de se construir como nação.

Depois disso vieram banqueiros oferecendo empréstimos a um país já depauperado, que cobravam tanto de comissões, juros e taxas que em alguns anos os lucros de seus acionistas na França superaram o orçamento de obras públicas do governo haitiano.

Em seguida chegaram os americanos. E, assim como havia sido lucrativo para gerações de banqueiros parisienses, o Haiti mostrou ser lucrativo para Wall Street. Em um relatório ao Senado em 1932, o National City Bank disse que obtivera uma de suas maiores margens de lucro durante a década de 1920 de uma dívida que controlava no país caribenho.

Pouco dessa história permanece hoje como parte do perfil público do Citigroup. O Haiti mal chega a ser mencionado na linha do tempo oficial da instituição. A empresa não permitiu o acesso do NYT a seus arquivos e disse que não conseguiu encontrar informações sobre os empréstimos que fez.

Mas, segundo quase duas dúzias de relatórios anuais publicados por autoridades americanas, um quarto da receita total do país foi usada ao longo de uma década para pagar dívidas controladas pelo National City Bank e sua filiada —cinco vezes o montante gasto com escolas públicas no período. E em alguns anos os diretores americanos gastaram parte maior do dinheiro haitiano com o próprio salário e despesas do que foi gasto com saúde pública no país de 2 milhões de habitantes.

"Temos sido dominados absolutamente", disse o advogado haitiano Georges Léger a senadores americanos em 1932, "apenas para satisfazer um grupo de banqueiros de Nova York."

Num primeiro momento, muitos legisladores americanos não queriam ter nada a ver com o Haiti e fizeram questão de ignorar a independência. Mas por volta do início do século 20, os americanos enxergaram um imperativo —e uma oportunidade. Queriam reduzir a influência europeia na região, especialmente a da Alemanha, e reconheceram algo que os franceses sempre souberam: havia muito dinheiro a ser ganho.

Historiadores ainda discutem o legado da invasão americana. Alguns consideram que ela impôs ordem numa época de violência arrasadora e golpes de Estado; outros observam que os americanos sufocaram a dissensão, cometeram assassinatos extrajudiciais e impuseram lei marcial por períodos prolongados.

Alguns mencionam ganhos palpáveis, como hospitais, 1.300 km de estradas e um funcionalismo público eficiente, mas também apontam para o uso de mão de obra forçada. Ainda outros dizem que a desapropriação de terras desencadeou uma das crises mais refratárias que assolam o hemisfério hoje: a vasta migração de haitianos para países da região.

Os especialistas da ONU na década de 1940 se depararam com um país miserável e "ainda mais atrasado que outros países e territórios da região". A maioria das cidades não tinha iluminação pública, rede de esgotos ou ruas pavimentadas. Apenas uma em cada seis crianças frequentava a escola.

Os diretores financeiros americanos tinham se concentrado tanto sobre o pagamento das dívidas do Haiti —incluindo empréstimos que os EUA haviam imposto— que uma comissão nomeada pelo presidente Herbert Hoover questionou "a prudência dessa linha de conduta". O relatório, em 1930, disse que "teria sido melhor haver deixado mais dinheiro no país, onde a experiência demonstrou que ele era necessário".

Mais de um século depois, os EUA permanecem como presença duradoura na política haitiana. Washington apoiou presidentes sucessivos, às vezes até mesmo os ditadores Duvalier, pai e filho que governaram por quase três décadas. Jovenel Moïse, assassinado em julho, também recebeu apoio de dois presidentes americanos, não obstante as evidências crescentes dos abusos cometidos por seu governo.

'Prejudicial aos interesses americanos'

"Sigamos o caminho que a ética demanda", disse Robert Y. Hayne, da Carolina do Sul, apelando para seus colegas parlamentares em 1826. A independência do Haiti era um tema que "a paz e segurança de uma grande parte de nossa União nos proíbe até mesmo de discutir".

Por décadas, os donos de "plantations" no sul dos EUA estavam preocupados com a primeira nação do mundo moderno a nascer de uma insurreição de escravos, e Hayne era porta-voz natural de seus temores: defensor firme da escravidão, nascido numa "plantation" produtora de arroz que em dado momento mantinha 140 pessoas escravizadas.

Hayne acreditava que reconhecer a independência —ou simplesmente discutir a escravidão— "comprometeria nossos interesses mais caros". Só durante a Guerra Civil que o presidente Abraham Lincoln reconheceu o Haiti. Ele enxergava o país, assim como a Libéria, como destino viável para os escravos libertos e enviou algumas centenas para lá.

No início do século 20, o Haiti estava ao centro de múltiplos interesses americanos: do outro lado do mar do Caribe em relação ao canal do Panamá, então em construção; os EUA haviam tomado Porto Rico; dinheiro americano inundara plantações de cana em Cuba; impostos de importação e exportação da República Dominicana, que divide uma ilha com o Haiti, estavam sob o controle dos EUA.

A França ainda tinha influência forte, mas em 1910 Washington enxergou uma oportunidade de marcar presença no país: a reforma do banco nacional haitiano.

Controlado por um conselho de direção em Paris, havia sido criado em 1880 para auferir lucros enormes a seus investidores e acionistas franceses e controlava o Tesouro do país. Em meio à desconfiança crescente haitiana, investidores de França e Alemanha procuraram reformar a instituição. Os EUA descreveram a proposta como uma ameaça direta —e também ao bem-estar e independência do Haiti.

O secretário de Estado Philander Knox convidou representantes de alguns bancos de Wall Street, onde os incentivou a investir no banco nacional haitiano. Quatro deles, entre os quais o National City Bank, adquiriram parcela significativa das ações; outra ficou com um banco alemão, e a fatia maior permaneceu em Paris. Nenhum haitiano tinha participação controladora.

Reivindicando o ouro

Roger Leslie Farnham era um ex-jornalista convertido em lobista quando foi recrutado pelo National City Bank em 1911. Sua missão era promover os interesses do banco no exterior, e o Haiti foi uma de suas primeiras escalas.

Farnham já era fartamente conhecido em Washington por suas maquinações para persuadir o Congresso a escolher o Panamá para construir o canal. Visitava o Departamento de Estado com frequência e mantinha relações cordiais com William Jennings Bryan, secretário de Estado de Woodrow Wilson.

Ele aproveitou esse relacionamento para fazer pressão por uma invasão do Haiti para assegurar interesses comerciais americanos. A presença do National City Bank estava crescendo na época, e Wall Street começou a exercer sua influência sobre os líderes haitianos. Nos meses seguintes o Departamento de Estado adotou o que diplomatas batizaram de "Plano Farnham", delineando a tomada pelos EUA dos impostos de importação e exportação haitianos.

A cidade haitiana de Cap-Haitien em julho de 2021 - Federico Rios - 23.jul.21/The New York Times

Embora os americanos ainda fossem acionistas minoritários, Farnham disse ao Congresso mais tarde que a França ficara demasiado absorvida pela Primeira Guerra Mundial. O Departamento de Estado redigiu uma convenção baseada no plano e o enviou ao Haiti para ajudar a colocá-la em prática.

Os parlamentares haitianos se enfureceram e acusaram seu chanceler de "tentar vender o país", obrigando-o a fugir da Assembleia Nacional, segundo telegrama do Departamento de Estado.

O banco nacional puniu todos eles por seu ato de desafio: congelou fundos, e o governo haitiano, já enfraquecido pela turbulência política e econômica, ficou ainda mais instável. O país trocou de presidente cinco vezes em três anos, ao longo de golpes sucessivos, alguns dos quais financiados por comerciantes alemães, disseram representantes dos EUA.

Em dezembro de 1914 o Departamento de Estado interveio de modo mais ativo. Após uma consulta de última hora com Farnham, Bryan autorizou a operação dos fuzileiros que tomou US$ 500 mil em ouro.

O governo haitiano se enfureceu, descrevendo a operação como um roubo descarado e "invasão deslavada da soberania" de uma nação independente. Os EUA argumentaram que se apossaram do ouro para "proteger interesses americanos gravemente ameaçados".

Em alguns momentos Bryan vacilou em relação ao papel dos EUA no Haiti. Ele acreditava que o país precisava da tutela americana, mas relutava em ser instrumento de Wall Street. Mas Farnham o pressionou, e ele acabou escrevendo a Woodrow Wilson para indicar seu apoio à invasão.

'A vitória do lobo'

Em julho de 1915 uma multidão enfurecida arrancou o presidente haitiano do consulado francês e o matou. Era parte da turbulência política que Wall Street temia e que, segundo historiadores, foi agravada pelo fato de o governo haitiano enfraquecido ter sido impedido de acessar fundos. Tropas americanas ocuparam o país no mesmo dia.

A invasão seguiu um plano detalhado que a Marinha americana havia traçado no ano anterior. Soldados ocuparam o gabinete presidencial e as alfândegas. Os americanos instalaram um governo fantoche, e no outono o Haiti já assinara um tratado entregando controle financeiro pleno aos EUA. Washington nomeou assessores, mas o termo não chegava a ser indicativo de seu poder pleno. Foi instaurada a lei marcial, jornais privados foram censurados e jornalistas, encarcerados.

O racismo moldou muitos aspectos da ocupação. Muitos administradores nomeados pelos EUA vinham de estados do sul e não ocultavam sua visão de mundo. John A. McIlhenny, herdeiro da fortuna do molho Tabasco, foi nomeado assessor financeiro americano em 1919, com autoridade plena sobre o orçamento. Em um almoço oficial antes da nomeação, ele não conseguiu desviar os olhos de um ministro haitiano —porque, como disse mais tarde a Franklin D. Roosevelt, "aquele homem teria valido US$ 1.500 em leilão em Nova Orleans em 1860 para servir de reprodutor".

Pouco após a ocupação, os intendentes começaram a construir estradas para ligar o interior montanhoso do Haiti ao litoral. Para isso, ressuscitaram a corveia, lei que obrigava cidadãos a trabalhar gratuitamente em obras públicas próximas a onde viviam, por alguns dias por ano, em lugar de pagar impostos.

Mas os militares americanos, com o apoio de uma força policial que treinaram e supervisionavam, capturavam homens e os obrigavam a trabalhar longe de casas e sem remuneração. Os ricos podiam pagar para ser isentos do trabalho, mas a lei não eximia os pobres.

Os haitianos interpretaram a corveia como um retorno à escravidão e se rebelaram. Homens armados fugiram para as montanhas e lançaram uma insurgência. Um dos líderes, Charlemagne Péralte, evocou a revolução do Haiti contra a França, conclamando seus concidadãos a "atirar os invasores no mar".

Os EUA responderam com força. Soldados passaram a amarrar trabalhadores para que não fugissem. Quem tentasse escapar do trabalho forçado era tratado como desertor, e muitos foram fuzilados. Os americanos executaram Péralte e distribuíram uma imagem de seu corpo amarrado a uma porta.

Documentos militares da época mostraram que 3.250 haitianos foram mortos, além de até 16 soldados americanos. "Foi um regime militar rígido, a vitória do lobo", escreveu em 1936 o jornalista e diplomata haitiano Antoine Bervin.

Os primeiros anos após a invasão trouxeram poucos benefícios econômicos. Em 1917 os EUA mandaram a Assembleia Nacional ratificar uma nova Constituição para autorizar estrangeiros a ser proprietários de terras no país —desde a independência, o país havia proibido a posse de terras por estrangeiros.

Com a negativa dos parlamentares, Smedley Butler dissolveu o Parlamento, com soldados invadindo o prédio e forçando os congressistas a se dispersar, sob a mira de armas. Então os americanos impuseram uma nova Constituição que Franklin Roosevelt diria mais tarde ter escrito ele próprio.

Como Bryan sugerira antes da invasão, Farnham não estava satisfeito com uma participação no banco nacional haitiano, de modo que trabalhou com o Departamento de Estado para orquestrar uma aquisição total. Até 1920 o National City Bank havia adquirido todas as ações por US$ 1,4 milhão, tomando o lugar da França como potência financeira dominante.

Com a instituição sob seu controle e as tropas protegendo interesses americanos, Farnham começou a agir como se ele próprio fosse enviado oficial. "A palavra de Farnham vale mais que a de qualquer outra pessoa na ilha", escreveu James Weldon Johnson, secretário-executivo da NAACP, em 1920.

Ajuda que o Haiti não queria

Autoridades americanas passaram cinco anos insistindo que o Haiti contraísse empréstimos de bancos de Nova York para saldar suas dívidas. E por cinco anos os haitianos resistiram. "O Haiti não quer esse empréstimo, não precisa dele", escreveu o advogado Pierre Hudicourt, que representou o país em negociações de dívida.

Os haitianos sabiam muito bem que qualquer empréstimo novo estenderia a autoridade dos assessores financeiros americanos. McIlhenny passava boa parte do ano em sua fazenda de abacaxis em Louisiana enquanto ganhava um salário grande pago pela receita haitiana. E suspendia o pagamento de haitianos que discordassem dele.

Em 1922 os EUA estavam determinados a obter um empréstimo de Wall Street. Fartos da resistência, instalaram como presidente um político astuto favorável à ocupação, Louis Borno. Ele admirava Mussolini e, segundo historiadores, aspirava a um ideal fascista de desenvolvimento rápido do Haiti sob controle americano. Semanas depois de tomar posse, ele aprovou um empréstimo de Nova York.

O National City Bank concedeu o valor depois de obter uma garantia de que os EUA administrariam as finanças do Haiti até a dívida ser saldada —o banco acabou controlando quase toda a dívida externa do país.

Como no século 19, o Haiti muitas vezes estava endividado demais para investir na população. A situação continuou assim mesmo com a queda das bolsas em 1929 e a devastação econômica que a seguiu. Anos de austeridade contribuíram para alimentar insatisfação generalizada, e a queda brutal dos preços do café aprofundou o sofrimento de um país fortemente dependente do produto.

Explodiram protestos contra os EUA e a administração de Borno. Estudantes fizeram maifestações contra a eliminação de bolsas de estudo, funcionários alfandegários invadiram o local de trabalho para reivindicar salários melhores. Na cidade de Les Cayes, mais de mil agricultores se insurgiram contra condições de vida miseráveis —um destacamento de 20 fuzileiros navais americanos enfrentou a multidão e matou pelo menos uma dúzia de pessoas, no massacre de Les Cayes.

Confrontados com um clamor internacional, os EUA começaram a contemplar uma retirada. Quase cinco anos mais tarde, em agosto de 1934, as últimas tropas deixaram o Haiti. Mas os EUA conservariam o controle financeiro por mais 13 anos, até o Haiti saldar a última de suas dívidas com Wall Street.

Selam Gebrekidan , Matt Apuzzo , Catherine Porter e Constant Méheut

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.