Na primeira vez que pensou em chamar Cláudio Abramo para trabalhar com ele, o empresário Octavio Frias de Oliveira foi direto: "Dizem-me que você é autoritário, comunista e tem frequentes acessos de loucura". O jornalista não pareceu intimidado ao responder: "É tudo verdade, mas em outros termos".
Ao recordar o episódio muitos anos depois, num depoimento publicado postumamente, Abramo disse ter esclarecido a Frias: "Sou marxista, de formação desde menino, sou autoritário, mas também disciplinado, e tenho meus acessos de raiva, como todo secretário de redação, pois vivemos sob tensão".
Os dois se encontraram em julho de 1963. Fazia quase um ano que Frias e seu sócio Carlos Caldeira Filho tinham adquirido o controle da Folha. Abramo acabara de deixar o concorrente O Estado de S. Paulo, onde atuara por 15 anos e contribuíra para promover reformas que haviam modernizado o jornal.
A contratação do jornalista ocorreu um ano e meio depois da primeira conversa com Frias e inaugurou uma colaboração que se tornaria decisiva para a trajetória da Folha, ao viabilizar mudanças que ampliaram de forma significativa o alcance do jornal nos últimos anos da ditadura militar (1964-1985).
Neto de um anarquista e irmão de trotsquistas, Abramo abandonou a escola sem concluir o ensino médio e começou a trabalhar como jornalista durante a Segunda Guerra Mundial, redigindo notícias para a agência Interamericana, que fazia propaganda dos países que haviam se aliado contra o nazismo.
Ele entrou no Estado como repórter em 1948, foi promovido a secretário do jornal aos 28 anos e decidiu sair quando sentiu que a crescente radicalização política do país havia contaminado a redação. Abramo ficou meses desempregado após o golpe de 1964. "As pessoas fugiam de mim", disse certa vez.
Só voltou a trabalhar no fim do ano, quando Frias o chamou para escrever análises diárias sobre a Folha, que circulavam internamente. Muitos editores do jornal não gostavam dele e o queriam longe da redação, mas Frias contornou as resistências aos poucos e nomeou Abramo secretário-geral em 1967.
Como a maioria dos jornais da época, a Folha apoiara o golpe e se recolheu diante do endurecimento do regime. A partir de 1968, quando foi editado o AI-5, o jornal passou a praticar autocensura, seguindo instruções que os órgãos de repressão enviavam diariamente para indicar o que podia ser publicado.
Abramo foi nomeado diretor de Redação em 1972, mas a janela para mudanças só se abriu dois anos depois, quando a chegada do general Ernesto Geisel à presidência deu início ao processo de abertura política do regime. Frias intuiu que era hora de agir, e Abramo parecia a pessoa certa para o momento.
Embora a Folha tivesse alcançado êxito comercial, o empresário sentia falta de uma identidade editorial forte que desse ao jornal o prestígio que distinguia seu principal concorrente. Na visão de Frias, a abertura criava o ambiente propício para transformações que poderiam tornar a Folha influente como o rival.
Em meados de 1974, Abramo se reuniu em Nova York com Frias e seu filho, Otavio Frias Filho, para discutir o assunto. Concluíram que o caminho era abrir o jornal para o debate público, dando espaço a jornalistas e intelectuais silenciados nos anos anteriores e tratando dos temas que a censura tinha proibido.
A Folha reformulou suas páginas de opinião e inaugurou a seção Tendências/Debates, que se tornou uma vitrine para manifestações de críticos do regime e uma marca duradoura do jornal, que até hoje busca refletir com os artigos publicados ali a diversidade de pontos de vista encontrada na sociedade.
Abramo fez fama como um chefe irascível, mas tinha também um charme pessoal para muitos irresistível. "Ele adotava posições surpreendentes muitas vezes e gostava de assumir riscos políticos e profissionais por vezes excessivos", diz o jornalista Alexandre Gambirasio, que trabalhou a seu lado na Folha.
Vestia-se com elegância e andava apoiado numa bengala, o que lhe dava ares de nobreza. "Uma espécie de aristocrata do bolchevismo, ele era, como todo mundo, dilacerado por contradições", disse certa vez Otavio Frias Filho, que foi assistente de Abramo, assumiu a Direção de Redação em 1984 e morreu em 2018.
Costumava brincar dizendo que, se um dia os bolcheviques tomassem o poder no Brasil, faria de Frias ministro da Fazenda, mas o manteria trancado à noite para não conspirar contra o governo, como Frias Filho lembrou tempos depois num depoimento concedido a Elio Gaspari, colunista da Folha.
Abramo parecia ter mais afinidades com Frias do que divergências, mas seu relacionamento esfriou no fim dos anos 1970, quando o empresário pediu que se afastasse do comando da redação após um episódio que mostrou como o processo de abertura política seria acidentado, provocando novo recuo do jornal.
Em setembro de 1977, os militares prenderam o jornalista Lourenço Diaféria por considerarem um dos seus artigos ofensivo às Forças Armadas, e a Folha decidiu publicar em branco o espaço reservado para sua coluna. O gesto irritou ainda mais o governo, que ameaçou fechar o jornal se ele fosse repetido.
Abramo não tinha gostado da coluna de Diaféria e se opôs ao protesto. "Votei contra", contou muito tempo depois. “Não tinham nenhum tanque para resistir e fatalmente seriam forçados a recuar." Ele se demitiu do cargo de direção, ficou mais um pouco no jornal e resolveu sair dois anos após a crise.
Em 1980, Frias o chamou de volta para ser correspondente na Europa. Abramo viveu em Londres e Paris e assinou vários artigos com pseudônimos que usava desde o início da carreira, Carlos Hard e John Poison. Retornou ao Brasil para assumir uma coluna diária na página 2 e ocupou o espaço até sua morte, em 1987.
CLÁUDIO ABRAMO (1923-1987)
Nascido em São Paulo, foi repórter e secretário do jornal O Estado de S. Paulo e começou a trabalhar na Folha no fim de 1964. Nomeado diretor de Redação em 1972, foi afastado em 1977. Foi correspondente em Londres e Paris e, a partir de 1984, titular da coluna São Paulo, da página 2. Publicado postumamente, o livro "A Regra do Jogo" (Companhia das Letras, 1988) reúne depoimentos e parte de sua produção jornalística.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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