“Ele era irreverente o tempo todo. E brilhante.”
Maurício Tuffani, amigo, ex-colega de Folha, atualmente editor do site Direto da Ciência e que ganhou do repórter, numa noitada no bar Empanadas, o apelido de TooFunny.
“O temperamento caótico não ajudava, mas era certamente componente inseparável de sua exuberância intelectual.”
Marcelo Leite, repórter especial da Folha, que foi seu editor em Ciência.
“Um cara muito provocador; talvez seja esse um dos principais adjetivos para descrevê-lo.”
Rafael Garcia, amigo, repórter do jornal O Globo.
“Foi, de longe, a pessoa mais culta que eu conheci.”
Anita Galvão, sua viúva, com quem se casou em 2010 e viveu nos seus últimos oito anos.
Ricardo Bonalume Neto, o Bona, era marcante, não passava despercebido por ninguém (e, principalmente, era impossível alguém passar despercebido por ele).
A Folha foi praticamente seu único empregador. Logo após se formar, trabalhou por seis meses em um jornal de bairro e, em seguida, entrou para a Folha.
Sarcástico, zombador, autoirônico, estava sempre a postos para provocações. “Quando íamos encontrá-lo, ele já vinha com aquela cara de que trazia na ponta da língua uma gracinha ou piada para fazer com a gente”, conta Rafael Garcia.
Sua primeira reportagem foi publicada na Ilustrada em janeiro de 1985: “Gatos e gatas embelezam o festival” tratava do público presente à primeira edição do Rock in Rio.
Mas a Ilustrada não seria sua maior vitrine. Bonalume destacou-se cobrindo as áreas de ciência e internacional, principalmente os conflitos mundo afora, assunto que era sua paixão.
A serviço da Folha, viajou quase o mundo todo: Haiti (quatro vezes), Timor Leste (duas vezes), Etiópia, Zaire/Congo, Galápagos, a Europa quase toda...
Já em setembro de 1987, pouco mais de dois anos após entrar para a Folha, acompanhou embarcado uma expedição que reconstituiu, com 11 navios que eram réplicas dos originais, a primeira viagem que colonizadores ingleses fizeram à Austrália 200 anos antes. Para manter a veracidade do feito, os veleiros tinham o tipo exato de vela usado à época. A expedição, iniciada em Portsmouth (Inglaterra), acabou dois meses depois, em Sydney. Bona embarcou quando os barcos passaram por Salvador.
Uma de suas mais importantes coberturas na África aconteceu em 1997. Em maio daquele ano, o hirsuto repórter —como ele próprio se adjetivava— viajou ao então Zaire (atual República Democrática do Congo) para acompanhar a revolução encabeçada por Laurent-Désiré Kabila que derrubaria o ditador Mobutu Sese Seko, no comando do país desde 1965.
A cobertura foi tensa, com Bonalume em meio a tiroteios e mortes. Ao voltar à Redação, marcou-se uma reunião com os jornalistas da casa para que o repórter-navegador relatasse a sua experiência naquele evento histórico.
O repórter especial Fábio Zanini, à época repórter da Agência Folha, relata como foi aquela palestra: “O Bona narrou a viagem, os tiroteios, as mortes... No meio da fala, abriu uma caixa e disse que iria mostrar uns ‘souvenires’ que trouxera de lá. E sacou dali umas cápsulas de balas douradas e pontiagudas, enormes, do tamanho da palma de uma mão. Resgatara aquilo do chão em frente ao palácio do ditador Mobutu. E disse rindo que agradecia por não ter sido atingido por nenhuma delas”.
Ao lado de tantas outras centenas de peças que foi recolhendo em suas viagens, essas cápsulas fazem parte do museu-biblioteca que é a sua casa, na Vila Madalena. Só de livros são mais de 8.000, organizados em dois andares.
“Eu moro não numa casa com biblioteca, mas numa biblioteca que foi transformada em casa”, diz Anita Galvão.
Pelas paredes estão mapas —com alfinetes marcando cada lugar em que ele esteve—, os objetos garimpados, as suas fotos nessas coberturas... Tem até o pedaço de um bombardeiro norte-americano que caiu no Amapá em 1944, durante a Segunda Guerra, e que foi encontrado em 1995. Bonalume trouxe a peça ao fazer a reportagem sobre o achado.
Para retratar a enciclopédia ambulante que era o seu marido, Anita conta da vez em que foram passar o fim de ano no litoral de São Paulo e não parava de chover. Haviam levado como divertimento um daqueles livros tipo “1.001 fatos que mudaram a história”.
“Era impressionante. A gente abria em qualquer página, qualquer uma, ‘Guerra das Rosas’, por exemplo, e ele dizia tudo o que tinha acontecido; ‘Imperador X’, e ele contava a vida toda da pessoa. Era uma diversão, ficávamos eu e meus filhos ouvindo aquilo. Era um absurdo. Ele sabia absolutamente tudo.”
Bona morreu em março de 2018, de hemorragia, durante uma cirurgia, após três meses de idas e vindas do hospital.
Ricardo Bonalume Neto
Nasceu em São Paulo (SP) em 1960 e começou a trabalhar na Folha em 1985. Morreu cedo, em março de 2018, durante uma cirurgia.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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