Ao chegar em casa após semanas de trabalho em reportagens investigativas Brasil afora, o fotógrafo Antônio Gaudério, 62, repetia um costume que deixava sua família espantada.
Ele imprimia uma foto com o rosto da pessoa alvo de denúncia na reportagem em que acabara de fotografar e a fixava na geladeira de casa. Muitos rostos apareceram na porta do eletrodoméstico, lembra a filha Ana Aurora Borges, 26, que cresceu vendo as fotos de gente estranha na cozinha.
“Se vocês encontrarem esse cara por perto é sinal de que ele está me perseguindo”, dizia ele, apontando para a foto, às duas filhas e à mulher, Rose, 55.
Também costumava escrever no espelho de seu quarto o número do telefone da Redação da Folha para, segundo o fotógrafo, ser usado em casos de emergência.
Gaudério não temia retratar assuntos espinhosos e que mexiam com interesses de gente graúda. Sua preocupação era a segurança de sua família após a publicação de cada trabalho.
Escancarou problemas sociais como prostituição infantil, trabalho escravo e descasos com a saúde pública. Perdeu as contas das vezes em que registrou a devastação da Amazônia, ainda na década de 1980.
Com olhar único, marcou seu lugar na história da fotografia brasileira ao sair do óbvio registrando imagens atemporais que estamparam a primeira página desta Folha nos quase 20 anos em que trabalhou no jornal.
“Ele registrou o início da Cracolândia e veja: ela continua lá. Aquelas primeiras fotos dele poderiam ser publicadas hoje”, diz Ana Aurora.
Gaudério é um apelido e refere-se à pessoa nascida no Sul. Natural de Ijuí (RS), Antônio Carlos Matos dos Santos, nome que quase ninguém associa ao do profissional, ingressou na faculdade de arquitetura, mas a paixão pela fotografia foi maior e o impediu de concluir o curso. Seu primeiro emprego como fotógrafo profissional foi no Diário Catarinense.
Ingressou na Folha, em 1989, onde se tornou uma referência. Antes disso, havia prestado serviços para as revistas IstoÉ e Veja.
Colegas de profissão contam que Gaudério era mais do que um fotógrafo. Tinha a capacidade de antever novos comportamentos e mudanças sociais que renderiam boas histórias.
Na virada do milênio, teve a ideia de viajar a João Pessoa (PB), o lugar onde os raios de sol do ano 2000 chegariam primeiro ao país.
Foi lá que fez a foto antológica do menino no campinho de terra batida defendendo um chute a gol com um “Jesus Cristo de braços abertos” ao fundo, que parecia ajudar o garoto nas defesas.
Não tinha muito traquejo para retratos, mas quando era incumbido de fazê-los tirava “leite de pedra”.
Um de seus retratos mais conhecidos é o de uma jovem de Osasco (Grande SP) que se preparava para fazer uma cirurgia bariátrica, em 2005. Gaudério a colocou diante de uma parede espelhada cujo efeito afinava silhuetas. A jovem foi clicada numa posição em que se viu o antes e o que seria o pós-cirurgia ao mesmo tempo.
O próprio Gaudério se pautava e escrevia as reportagens quando não estava acompanhado de um repórter.
Num de seus trabalhos mais emblemáticos, em 2007, viajou para La Paz apenas com um celular com câmera fotográfica, uma muda de roupas e seus documentos pessoais.
Procurou anúncios de trabalho, conversou com agenciadores e até se diplomou como costureiro numa escola de da capital boliviana.
O esforço de imersão era para ser aceito dias depois nas confecções dominadas por bolivianos e coreanos na cidade de São Paulo e narrar a situação degradante à qual os imigrantes são submetidos nas oficinas, com jornadas de até 17 horas.
O relato de Gaudério, em primeira pessoa, recebeu o Grande Prêmio Folha daquele ano pela reportagem “O preço de um vestido”. Na Folha, ele foi agraciado com outros dois prêmios institucionais.
Gaudério também foi reconhecido em premiações ligadas aos direitos humanos, como o Vladimir Herzog, de 1993, com a sequência fotográfica “Crise na Saúde”; e o Ayrton Senna de Fotografia, de 2000.
Escreveu livros sobre a ligação do Brasil com o futebol e sediou exposições, como a que retratou a luta do povo kalunga pela demarcação de seu quilombo, em Goiás.
A trajetória profissional de Gaudério foi abreviada, porém. Aos 49 anos, ele sofreu um acidente doméstico e caiu de uma altura de três metros nas obras da casa de uma irmã dele, em maio de 2008, em Itacuruçá (litoral fluminense).
Levado a um hospital do Rio de helicóptero, sofreu hemorragia, ficou desacordado e passou por inúmeras cirurgias na cabeça. Reaprendeu a reconhecer a família e amigos. Só não conseguiu mais fotografar como antes.
À Folha, porém, ele conta que não larga a câmera “porque não sabe viver sem ela”. Antes da pandemia de Covid-19, tirava fotos do cotidiano da metrópole e da filha caçula, Maria, 18, que é modelo.
“Hoje eu cuido do meu acervo. Tenho resgatado minhas fotos e publicado no Instagram. Não me lembro como eu fiz tudo isso, mas elas são importantes e muito lindas.”
Gaudério comercializa as fotos de seu acervo, também cedido pela Folha, em seu site próprio (linklist.bio/
Antoniogauderio).
Sobre o melhor clique, ele não titubeia. Diz gostar muito do registro que fez de um grupo de meninos de rua que brincavam de escalar a corrente da âncora de um navio abandonado no litoral do Rio de Janeiro.
A foto foi clicada em 2001 e ganhou o nome de “Nau à Deriva”. “É tudo muito lindo. A composição, o movimento e essas crianças felizes nesse lugar improvável”, diz.
“Bom foi ter conseguido viver tudo isso”, finaliza.
Antônio Gaudério, 62
Nascido em Ijuí (RS) em 1958, começou a trabalhar na Folha em 1989. Recebeu distinções como o Grande Prêmio Folha, o Vladimir Herzog e o Prêmio Ayrton Senna de Fotografia. Entre os livros que lançou, está “Viagem ao País do Futebol” (ed. DBA), em parceria com o jornalista Mario Magalhães.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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