Lia em latim, alemão e francês, entendia de física, química, microbiologia e administração pública, além de ser um pesquisador e divulgador científico internacionalmente reconhecido. Essas eram características do humano da Folha José Reis.
Julio Abramczyk, médico e jornalista que escreve para a Folha desde 1960, conta que “o legado que Reis deixou foi ter iniciado em nosso meio a saída dos cientistas da torre de marfim, onde viviam bem acomodados e isolados uns dos outros. Quem aparecia no jornal ficava mal-falado na comunidade científica”.
“Acredito que, graças ao pioneirismo de Reis, nesta pandemia ninguém estranha a presença de cientistas e pesquisadores colaborando com os meios de comunicação, explicando a Covid-19, seus problemas e os necessários cuidados”, diz o médico.
Luiza Massarani, coautora de “José Reis: caixeiro-viajante da ciência” (ed. Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz, com Mariana Burlamaqui e Juliana Passos Alves ), e curadora do acervo José Reis, na Casa de Oswaldo Cruz, da Fiocruz, afirma que uma de suas principais lições foi dar a devida importância à divulgação científica e de se manter um diálogo entre cientistas e sociedade.
Dos 100 anos do jornal, Reis esteve presente de 1947 até sua morte, em 2002, e chegou a ser diretor de redação de 1962 a 1967, quando se instalou a ditadura militar.
Reis escreveu décadas depois: “Tarefa penosa em momento de transição e, para o jornal, de crise econômica, tudo isso agravado pelo advento da Revolução de 1964. Tinha, felizmente, colaboradores dedicados e prudentes, que me ajudaram a navegar em águas mais do que turbulentas sem comprometer o espírito de independência do jornal[...]”. Foi sob sua gestão que a Folha publicou editorial que apoiava o golpe de 1964 —50 anos depois o jornal reconheceu o erro daquele conteúdo.
Graças ao pioneirismo de Reis, nesta pandemia ninguém estranha a presença de cientistas e pesquisadores colaborando com os meios de comunicação, explicando a Covid-19, seus problemas e os necessários cuidados
Se por um lado Reis tinha bom trânsito entre os manda-chuvas da época e reclamava de “estudantes profissionais”, interessados em lutas políticas de grupos de esquerda nas universidades, também atuou na defesa da liberdade de expressão e de cientistas perseguidos. Segundo ele, o regime militar já não atendia aos interesses da sociedade, mas os de uma minoria.
Nessa época, entre comandar o jornal e debater o desenvolvimento do país, Reis promovia feiras de ciências para jovens no interior paulista para brotar nos estudantes o espírito crítico, com base na investigação e no conhecimento dos fenômenos químicos, físicos e biológicos. Daí o apelido: “caixeiro-viajante da ciência”.
Foi por causa dele que nasceu a seção No Mundo da Ciência, em 1948. Temas científicos, como a estrutura de materiais, o funcionamento do microscópio, a vida dos microorganismos e os perigos da poluição habitavam aquelas páginas. Na subseção Ponto de vista, eram reproduzidos textos de pessoas ilustres sobre ciência.
Era o embrião do caderno de Ciência, da Folha, que seria criado em 2000.
Um exemplo de como Reis esteve atento à área é o primeiro texto a mencionar “aquecimento global” na Folha, de sua autoria, em 1978, sobre um relatório que alertava autoridades dos EUA sobre alterações climáticas provocadas pela alta taxa de emissão de dióxido de carbono na atmosfera do planeta.
As contribuições científicas de Reis para o jornal permaneceram por décadas, com a coluna Periscópio, onde passeava por diversos temas científicos. Por sua influência, notícias que envolviam assuntos científicos proliferaram em outras editorias do jornal.
Nascido no Rio de Janeiro em 1907, Reis se formou na Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ no final da década de 1920, mas não desenvolveu muito apreço pelas disciplinas clínicas.
Mudou-se para São Paulo, onde seria pesquisador do Instituto Biológico. Como bacteriologista, sua missão era estudar os patógenos que atingiam as aves e atrapalhavam o crescimento da avicultura paulista. Começou aí o trabalho como divulgador científico, ao explicar para os criadores como proteger os bichos das doenças.
Participava das aventuras a farmacêutica Annita Swensson, também pesquisadora do Instituto Biológico. Eles foram casados de 1932 a 1999, ano de sua morte, e tiveram dois filhos, Marcos, e Paulo, já falecido.
No lar, Reis, embora exigente, era aberto e receptivo. “A hora das refeições era algo sério. Todos se sentavam à mesa, nos seus lugares. Papai contava histórias da família, de ciência, da literatura e tomava lição de matemática e física”, conta Marcos, 83.
Por sua contribuição para a comunicação científica, o maior prêmio da área no país leva seu nome, assim como o Núcleo José Reis de Divulgação Científica da ECA/USP. Reis ainda participou das discussões para a criação da Fapesp e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1948 —onde fundou e editou a revista Ciência e Cultura.
Morreu aos 94 anos, com complicações pulmonares. Ele já apresentava sinais de debilidade —não intelectual. “O geriatra dizia que, por conta da intensa atividade intelectual, ele tinha uma grande reserva cognitiva”, conta Marcos.
Suas colunas, publicadas até o fim da vida, são provas.
José Reis (1907-2002)
Nascido no Rio em 1907, começou a colaborar com a Folha em 1947. No ano seguinte, ajudou a criar a seção No Mundo da Ciência, precursora do atual caderno de Ciência. Foi diretor de redação de 1962 a 1967. Formado em medicina pela UFRJ no final dos anos 1920, mudou-se para SP para atuar como pesquisador no Instituto Biológico. Participou da criação da Fapesp e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Pela atuação como divulgador científico, carrega o nome do principal prêmio da área. Manteve na Folha a coluna Periscópio até sua morte
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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