Era peculiar o seu jeito de pronunciar as palavras, sobretudo quando se tratava dos nomes dos astros e estrelas hollywoodianos e da filmografia estrangeira que tanto lhe eram caros. Apurados, os ouvidos de Issa Gubeisse sabiam distinguir de longe as melodias que imortalizaram os clássicos do cinema. Ele era, pode-se dizer, um aficionado da sétima arte.
Não era crítico, mas espectador assíduo e, mais que isso, um ótimo vendedor de espaço para a publicidade de filmes neste jornal. Seu Issa, como era conhecido, foi o primeiro a trazer um anúncio de lançamento de cinema publicado em página inteira, no caderno Ilustrada, da Folha. A façanha foi um marco comercial no fim dos anos 1970, quando essa indústria ainda não tinha a estrutura robusta de grandes exibidores, os chamados multíplex.
Seu Issa respirava cinema. Se, durante a semana, os filmes eram parte de seu trabalho, aos domingos, eram o seu lazer. Ele levava a família às grandes salas do centro da capital paulista, onde as pessoas ainda se encantavam com as gigantescas telas.
Uma música de filme que tocasse no rádio ou na TV de casa logo era assunto de conversa em família. Seu Issa, à maneira de um professor que tomasse o ponto dos alunos, indagava dos três filhos —Lidia, Nair e Carlos Alberto— a que filme pertencia a melodia.
Estudou apenas até o ginásio. Quando moço, trabalhava, durante o dia, numa loja de tecidos e, à noite, no antigo jornal Gazeta Esportiva.
Sua paixão e entusiasmo para com o trabalho deixaram um exemplo para todo o time da publicidade
À Folha, chegou em 1977 para comercializar espaços publicitários para peças de teatro, shows e, principalmente, para o cinema. “Independentemente de ser focado na área cultural, sua paixão e entusiasmo para com o trabalho deixaram um exemplo para todo o time da publicidade”, afirma Marcelo Benez, 51 anos, 27 deles na Folha, diretor-executivo da área Comercial.
Seu Issa não perdia uma estreia de filme, tampouco a chance de ser fotografado na companhia de atores e diretores. Na sua galeria, figuravam, entre outros rostos, Michael Douglas, Jack Palance, Franco Zeffirelli e Roman Polanski.
Em 1995, quando Jean-Claude Van Damme veio a São Paulo para o lançamento do filme “Morte Súbita”, lá se foi seu Issa para registrar o encontro ao lado do ídolo que fazia sucesso em filmes de ação com artes marciais. Mandou emoldurar a foto num quadro, que pendurava na parede do Departamento Comercial.
Fez mais: imprimiu-a em uma camiseta, que ostentava com o orgulho de quem carrega um valioso troféu. “Ele via o Van Damme como alguém forte, porém sensível e gentil. Meu pai se identificava com ele”, recorda-se Nair, 64.
A paixão do papai era a família e a Folha
Ele ganhava de exibidores e distribuidores uma boa quantidade de ingressos para assistir às películas, com os quais fazia pequenos agrados a quem quer que fosse. Do motorista ao padeiro, passando por amigos dos filhos e colegas de trabalho, todo o mundo esperava o mimo que ele sacava do bolso cheio do paletó.
Ao entrar na Folha, por volta das 7h, a primeira coisa que fazia era ler os jornais. Separava os exemplares e os distribuía para toda a equipe. Alertava os parceiros do Comercial quando via um anúncio de filme na concorrência.
Mesmo aposentado, não deixou de trabalhar. “A paixão do papai era a família e a Folha”, conta Lidia, 68.
Certa feita, no caminho do trabalho, sofreu uma queda e quebrou o fêmur da perna direita. No hospital, submeteu-se a uma cirurgia e descobriu outro problema: os rins já não funcionavam como antes.
Com a lábia de vendedor, a simpatia de sempre e os ingressos no bolso, tentou convencer enfermeiros a deixá-lo sair antes da hora, pois precisava “dar um pulinho na Folha”. O que queria, a qualquer custo, era manter-se em ação.
Passava um pouco das 19h de 29 de maio de 2013 quando a última luz se apagou para seu Issa. Na despedida, o caixão foi coberto com a bandeira da Portuguesa, time que dividia com os astros do cinema o coração dele. Nos pés, levou desta vida o mesmo par de sapatos, feitos à mão pelo pai sírio, com que era visto em suas idas às estreias de cinema.
Issa Gubeisse (1924-2013)
Nasceu em São Paulo, filho de pais sírios. Seu sonho era ser jornalista especializado em cinema. Embora não tenha realizado essa aspiração, chegou a ser tratado como tal em cerimônias de entrega de prêmio por sua devoção ao universo cinematográfico no Brasil e na Itália. Entrou no Comercial da Folha em 1977.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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