Entre patos e formigas, obra de Ciça compõe fábula política do Brasil
Cartunista publicou na Folha de 1967 a 1985, quando as tiras estrangeiras dominavam
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O Brasil pode ser muito bem resumido por um pato, um punhado de formigas e algumas galinhas —tudo em preto e branco.
Ao menos é a impressão provocada pela obra cinquentenária de Cecilia Alves Pinto, ou Ciça, 80, a criadora do Pato, personagem-título das tiras que frequentaram a Ilustrada de 1967 a 1985. A ave e seus companheiros foram responsáveis por reembalar, com humor, os dilemas e problemas que pululavam naquele Brasil da ditadura militar.
Estranhamente (ou não), a obra de Ciça mostra que não perdeu a atualidade neste Brasil de 2020. Se juros e inflação, dois assuntos recorrentes, estão mais contidos, outros questões da vida nacional mudaram bem menos.
“Eu sempre tive um dedo no jornalismo, desde menina. Eu morava no Rio, e minha família era ligada à revista O Cruzeiro [revista semanal publicada de 1928 a 1985]. Então, nasci nisso”, conta. “Eu vivia com jornalistas, e entre estes havia humoristas. Era casada com o Zélio [Alves Pinto, artista plástico e irmão de Ziraldo], era da turma do Millôr, Ziraldo… Eu gostava de vê-los fazer charges, ilustrar. Eu tinha ideias, mas, como ninguém as aceitava, resolvi fazer.”
Desde esse começo, Ciça desenhava animais e dava a eles o poder de sintetizar a vida política e social brasileira. “Não sei o porquê de serem animais. Quando pequena, meu personagem de quadrinhos preferido era o Pato Donald, talvez disso tenha ficado algo… Dos meus personagens, os prediletos eram as formigas, porque eu podia fazer uma coisa mais política.”
No zoo de Ciça, patos e galinhas discutiam questões pessoais, familiares e do dia a dia. As formigas representavam a classe política e os militares. A ilustradora levanta uma hipótese para explicar a tranquilidade com que publicou as críticas ao regime: talvez os militares não se sentissem à vontade para assumir a identificação pública com um inseto insignificante.
“Sei que eu saía em lista de suspeitos, mas ficou nisso. Acho que meu trabalho era um escape para as pessoas. Eu sinto isso quando leio uma notícia que está me representando. Fico agradecida, ‘graças a Deus tem alguém falando’.”
Numa época dominada por tirinhas estrangeiras adquiridas em pacotes com vários títulos diferentes, Ciça era uma das raras presenças brasileiras nas publicações diárias. Entre histórias de Popeye, Matt Dillon e da Periquita (a Nancy de Ernie Bushmiller), ela dividia o espaço na Folha com Mauricio de Sousa.
Ciça publicou pela primeira vez no suplemento O Sol, do Jornal dos Sports, diário do Rio que circulou de 1931 a 2010. Durou pouco, mas o suficiente para colocá-la na roda de quadrinistas. Quando se mudou do Rio para São Paulo, foi ao Estado de S. Paulo oferecer seu trabalho.
“O Mino Carta me recebeu e disse: ‘Olha, a gente não vai comprar. Vou te explicar o porquê’. Ele abriu a gaveta e mostrou: ‘Para ter uma tira que faz sucesso, tenho que comprar outras… Essas já estão pagas, não posso comprar mais”.
Ele lhe deu, porém, uma carta de recomendação para ser entregue a Cláudio Abramo [1923-1987], da Folha. “Cláudio gostou e, a partir daí, passei a publicar.”
Sua estreia foi anunciada na capa da Folha no dia 16 de novembro de 1967, uma quinta, ao lado de manchete sobre a inauguração da pista duplicada da via Dutra. A publicação começou no domingo, 19.
Ela lembra que, no começo, ia ao jornal uma vez por semana para entregar as tiras. Com o tempo, passou a fazer o material muito em cima do que estava acontecendo e o levava a cada dois dias.
Fazia as artes em casa, onde também criava três filhos pequenos. “Eu ficava muito assoberbada. A gente não tinha empregada. Morávamos numa casa pequena, mas mesmo assim… Eu li que o Walt Disney tinha uma equipe gigantesca. Tinha um que fazia o cenário, o outro que fazia a letra, outro que coloria… Pensei ‘preciso de uma equipe!’. Onde fui achar uma equipe? Zélio Alves Pinto, meu marido, porque ele também desenhava. Ele era minha equipe. Eu fazia o texto e o desenho a lápis, e ele, a arte final. Assim trabalhamos juntos por 20 anos, eu e ele.”
Havia algum machismo, ela diz, “mas não era uma coisa agressiva, em geral”. “Tinha umas coisas pontuais. Teve alguns redatores que realmente… E pessoas que diziam que não era eu que fazia as tiras, que era o Zélio. Mas, bem, a gente espera isso.”
Ciça também publicou em O Pasquim (tabloide publicado entre 1969 e 1991), e dois de seus livros de tiras saíram pela editora do semanário carioca. A Circo, do editor Toninho Mendes, lançou “Pagando o Pato” em 1986. O volume foi reeditado em 2006, num formato de bolso, pela L&PM. Mendes conviveu com Ciça e Zélio por muitos anos.
“Ele tinha vindo nos visitar uns 15 dias antes da sua morte [em 18 de janeiro de 2017]”, diz Ciça, que conta que a casa onde morava nos anos 1970 e 1980, na rua Dr. José Manuel, perto da avenida Pacaembu, era frequentada por gente dos quadrinhos. “Todos eles, Angeli, Laerte, iam lá. Sou fã de vários dos meus colegas. De Laerte, 100%. Laerte é cria lá de casa, ia quando começou. Gosto muito dela.”
A parceria com a Folha se estendeu até meados dos anos 1980. “Logo que parei de colaborar com o jornal, o Zélio ganhou uma bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação) e fomos morar nos EUA. Eu me desliguei da vida política do Brasil.”
A família ficou em Nova York por sete anos. “Quando parei, eu já estava num ponto em que as tirinhas se repetiam. Na verdade, as tirinhas três anos depois repetiam o que estavam acontecendo. Tenho um pouco de preguiça de voltar a produzir… Até agora não me animei.”
Ciça parou de publicar tiras, mas ainda escreve livros infantis —são 28 publicações, algumas delas ilustradas por Ziraldo e por Zélio, com quem vive há 57 anos. “O segredo é paciência e chamego”, conta, sobre o casamento. “Essa coisa de pele é fundamental. Sabe, você fazer carinho físico. Não só é gostoso, como é bom.”
As artes originais de suas tiras tiveram um destino que ela mesma define como trágico. “Quando foi criado o Arquivo Público do Estado de São Paulo [órgão do governo paulista], resolveram fazer um museu de quadrinhos [o MAG, Museu de Artes Gráficas, projeto liderado pelo quadrinista Gualberto Costa que foi inaugurado em dezembro de 2002 e fechado em abril de 2003]. Como alguns [integrantes] eram da turma que estava sempre em casa, fui umas das primeiras a quem pediram o material. Dei quase todos os meus originais. Aí ocorreu uma troca de gestão, e todos os meus originais foram jogados fora.”
Eram mais de 7.000 desenhos, conta ela, que logo emenda: “Vida de artista é assim mesmo”.
Este texto faz parte do projeto Humanos da Folha, que apresenta perfis de profissionais que fizeram história no jornal.
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