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Filmes mostra de cinema

De Tom Cruise a Michelle Yeoh, cinema em 2022 foi saudoso, identitário e crítico a Bolsonaro

Ano em que Jean-Luc Godard morreu foi movido por casos de censura e por tendências como a de tirar sarro dos super-ricos

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Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick' Paramount Pictures/Divulgaçao

São Paulo

Quando um grupo de caças riscou o céu de Cannes com a trilogia de cores compartilhada pelas bandeiras da França e dos Estados Unidos, mal sabiam os cinéfilos do festival que ocorreu em maio que aquela era a chegada de uma superpotência das bilheterias de 2022.

"Top Gun: Maverick" foi adiado pela pandemia, visto por muitos como uma sequência desnecessária para um roteiro já esvaziado de ideias e acabou encerrando o ano como a maior arrecadação das salas de cinema.

Elenco de "Top Gun: Maverick" observa caças cruzarem o céu durante a estreia do filme no Festival de Cannes - Valery Hache/AFP

Estrelado por Tom Cruise, o longa fez quase US$ 1,5 bilhão de bilheteria, ou R$ 8 bilhões, deixando super-heróis da Marvel e minions bem para trás. Foi a coroação de um saudosismo que pautou o ano, impulsionado pelo reencontro mais robusto entre público e telona numa fase mais branda da Covid-19.

Cruise foi a grande estrela de Hollywood em 2022 e compartilhou a atenção com outros astros das antigas, capazes de atrair fãs mais velhos e uma nova geração. De "Jurassic World: Domínio", saíram Sam Neill, Laura Dern e Jeff Goldblum; de "Halloween Ends", Jamie Lee Curtis, e de "Pânico", Neve Campbell e Courteney Cox.

Cannes, de certa forma, encapsulou mais de uma tendência do ano que se encerra para o cinema. A começar pela atenção dada à guerra na Ucrânia, com direito a discurso do presidente Volodimir Zelenski e pedidos de boicote a filmes russos, algo que se repetiu em outras mostras e festivais.

Já a Palma de Ouro entregue a "Triângulo da Tristeza" escancarou os tempos de ataques aos super-ricos. Eles tiveram dificuldade de escapar das lentes corrosivas que denunciaram os excessos de um mundo refém de Elon Musk —assunto importante para uma indústria que faz de tudo para se vender como liberal.

O premiado na Riviera Francesa é provavelmente o mais direto e escrachado de toda essa safra, com cenas que incluem ricaços vomitando sobre vieiras e oferecendo relógios de ouro para conseguir um lugar para dormir. Mas definitivamente não está só.

Lançado em dezembro passado, "Não Olhe para Cima" conseguiu entrar em 2022 pautando discussões que envolviam o desinteresse de autoridades e empresários em preservar o planeta. "O Menu" usou a comida para mostrar quão estragados são alguns dos representantes dessa elite. E até o brasileiro "O Clube dos Anjos" teceu comentários ríspidos sobre classe, cor, gênero e status.

No circuito comercial, foram vários os diretores, astros e produtores que levaram questões identitárias às telas, tentando provar que tramas sobre grupos marginalizados têm potencial de chacoalhar as bilheterias e de bater de frente com qualquer blockbuster.

Viola Davis foi relativamente bem com "A Mulher Rei", longa recheado de ação sobre um grupo de mulheres guerreiras da África, mas Billy Eichner viu naufragar "Mais que Amigos", comédia romântica entre dois homens que tinha grandes ambições, mas pouco apelo fora dos círculos LGBTQIA+.

Identidade também foi chave em outros filmes importantes, como "Não! Não Olhe!", novo terror de Jordan Peele, e "Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo", que com um elenco asiático encabeçado por Michelle Yeoh monopolizou rodas de conversa, fez rios de dinheiro e ainda deve levar prêmios para casa.

Enquanto o circo pegava fogo, o Oscar retornou ao formato clássico laureando o mais inofensivo de seus indicados a melhor filme, "No Ritmo do Coração". Fofo e bem feitinho, o longa sobre uma família de surdos não deve ter o necessário para entrar para o grupo dos grandes em Hollywood, e só não cairá no esquecimento por seu potencial para a Sessão da Tarde.

Foi uma mensagem de que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas ainda não se transformou, apesar de todas as novas políticas e a admissão de novos membros nos últimos anos, e que tampouco está disposta a dar o principal prêmio da indústria de cinema americana a uma produção da Netflix, como muitos achavam que aconteceria com "Ataque dos Cães".

As mudanças virão a passos lentos para a premiação, ela deixou bem claro, mas a cobrança mais urgente é feita ao Globo de Ouro.

Depois de implodir em meio a acusações de suborno e clubismo e ao fato de não ter membros negros, o prêmio chegou a 2022 sem importância, mas esfregando na cara da cinefilia as tentativas de reformar sua imagem –que ainda não surtiram tanto efeito.

Outra polêmica que se avoluma e se mostrou mais urgente em 2022, na ressaca da tomada do posto de maior mercado cinematográfico pela China, é a de filmes hollywoodianos censurados e picotados ao estrearem no país asiático.

Além da China, nações com bilheterias emergentes, em especial no mundo árabe, como o Qatar e a Arábia Saudita, também vêm impondo rígidas regras para que blockbusters que tocam em tabus locais –como temas ligados aos LGBTQIA+, feminismo e autoritarismo– possam chegar às salas.

Hollywood ainda não adotou um comportamento padrão. Por vezes cedeu, cortando cenas como aconteceu com "Animais Fantásticos: Os Segredos de Dumbledore", e em outras decidiu cancelar o lançamento nesses países, como foi o caso de "Doutor Estranho no Multiverso da Loucura".

Esta, aliás, foi uma das grandes estreias num ano em que os super-heróis tentaram ser mais autorais. O longa de Sam Raimi flertou abertamente com o terror, enquanto "Thor: Amor e Trovão", de Taika Waititi, se provou uma ode às comédias românticas das antigas.

Também da Marvel, "Pantera Negra: Wakanda para Sempre" deu a Ryan Coogler a oportunidade de aumentar a voltagem dramática em sua história de raízes africanas, enquanto na DC, "Batman", de Matt Reeves, se aproximou dos bons filmes policiais e de suspense.

No Brasil, estes e outros pesos pesados foram um entrave para que filmes nacionais assentassem nas salas de cinema. Depois de meses represados em meio à pandemia, longas de pequeno porte –o grosso da produção brasileira– se digladiaram para garantir datas de lançamento no calendário de 2022.

Isso gerou um aumento na quantidade de filmes nacionais estreando, mas um tempo menor em cartaz, motivado pelo baixo comparecimento do público a cada uma das sessões.

Dessa leva nacional que se atropelou, os mais notáveis foram os filmes que puseram o Brasil de Bolsonaro sob ataque, numa espécie de expurgo de adeus de uma classe tão brigada com o governo federal.

"Medida Provisória", de Lázaro Ramos, encabeça a lista e foi um dos poucos a ter arrecadação significativa, graças a uma trama distópica que passeou por diferentes gêneros enquanto denunciava o racismo e os anseios autoritários da sociedade atual.

"Marte Um", escolha frustrada do Brasil para tentar uma vaga no Oscar, também trouxe um elenco protagonista negro, mostrando as várias crises que batem à porta de uma família diante da eleição de Bolsonaro.

"Os Primeiros Soldados", "Mato Seco em Chamas", "Fogaréu", "Regra 34", "Amigo Secreto" e "O Debate" foram outros que, no circuito ou em festivais, cutucaram a caretice que se alastrou pelo país e versaram sobre temas condenados pelo presidente que deixa agora o Alvorada.

Baixas mais definitivas abalaram o mundo cinéfilo aqui e lá fora, em especial a de Jean-Luc Godard, cineasta francês expoente da nouvelle vague morto em setembro e que levou consigo, simbolicamente, toda uma era de efervescência cultural.

Peter Bogdanovitch, Wolfgang Petersen, Ivan Reitman, Arnaldo Jabor e Breno Silveira foram outros cineastas que nos deixaram. Divas como Olivia Newton-John e Monica Vitti, também. William Hurt, Ray Liotta, James Caan, Paul Sorvino, Charlbi Dean, Louise Fletcher, Robbie Coltrane e Sidney Poitier completam a lista de perdas.

Enquanto 2023 não chega com suas novidades, a Sight & Sound, prestigiosa revista editada pelo Instituto Britânico de Cinema, encerrou o ano convidando os cinéfilos a revisitarem alguns dos grandes filmes da história.

Publicada uma vez por década, sua lista dos cem maiores títulos de todos os tempos chegou no começo de dezembro com uma mulher à frente, pela primeira vez. Chantal Akerman, com "Jeanne Dielman", chocou muita gente ao destronar "Cidadão Kane" e "Um Corpo que Cai", deixando claro que o cinema é uma área em constante transformação.

Para rivalizar com a seleção mais cabeçuda, só mesmo o senso de novidade que "Avatar: O Caminho da Água" trouxe às salas nesta reta final de 2022. Aguardada sequência de James Cameron, impulsionada por traquitanas tecnológicas, a trama quer provar que, após 13 anos, tem fôlego para unir eruditos e fãs de pipoca.

Mas se conseguirá chegar perto dos US$ 3 bilhões de bilheteria, como "Avatar" fez em 2009, só saberemos quando mergulharmos no ano que vem.

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