Dia #21 – Barcelona – Sexta, 3 de abril. Cena: hoje, e só hoje, me dei conta que estamos na primavera –há quase 15 dias.
A Espanha hoje contabiliza 117.710 casos de Covid-19, com quase 11 mil mortos.
Especialistas analisam que nos aproximamos de uma estabilização de casos. O governo estuda a possibilidade de estender o confinamento por mais duas semanas, até o final de abril. Pelo menos.
Socorro. Mas vamos.
Essa sensação de gato-que-subiu-no-telhado atiça, claro, o ambiente político. Com o avanço da crise, também aumentam a tensão, as divergências e os momentos deixa-eu-subir-no-caixote-de-fruta pra fazer discurso.
Se é assim agora, fico pensando como vai ser quando vier a rebordosa do confinamento, e a nação —o planeta— tiver que juntar os pedaços.
Nesta semana, Pablo Casado, do PP, líder da oposição, acusou o governo central de enfrentar a crise com um "coquetel explosivo de arrogância, incompetência e mentiras". Ainda por cima convidou-o a consultar seu expertise, desenvolvido, segundo Casado, em crises anteriores como a do ebola, em 2014 (quando, durante o governo do PP, uma enfermeira espanhola foi o primeiro caso —e o único confirmado na Espanha— fora do continente africano). Hmm.
Em entrevista para um canal de tevê, Casado reclamou da má gestão de recursos, disse que o premiê Pedro Sánchez não entra em contato pra conversar "há dez dias" e que a oposição vem apoiando as decisões governamentais mesmo sem ter acesso antecipado aos textos integrais (humm).
E aproveitou pra cair matando com a faquinha antissocialista não-Ginsu nos dentes em cima de seu xará, líder do Podemos, partido da coalizão governamental: "Pablo Iglesias começa a dizer que a propriedade privada está submetida ao interesse geral. Já vemos aonde leva isso. Leva à Venezuela ou à Grécia", disparou.
Por outro lado, algumas de suas sugestões ecoam considerações, em certa medida, populares. Uma delas: destinar um pagamento extra aos trabalhadores de saúde, "pelo risco que assumem", e suspensão de impostos aos demais que seguem na ativa durante o confinamento. Outra: cotas zero para empresas e autônomos inativos (no momento, em conjunto com a Fazenda, foram aprovadas moratórias de dívidas e cotas).
Cotejar críticas e histerias de todos os lados não é tarefa fácil.
Nem, aparentemente, recordar a história recente: apenas dois anos atrás, membros do então situacionista PP estrelavam escândalos de corrupção. Mais exatamente, o maior escândalo de corrupção da história da Espanha democrática, registrado nas fábulas adultas como "caso Gürtel".
Em miúdos: quase 40 pessoas envolvidas em uma grande rede de subornos, desvios de fundos públicos e caixa dois desbaratada ao longo de 11 anos de investigação, com saldo final de 29 condenados a um total de 351 anos de prisão e 245 mil euros (R$ 1,4 milhão) de multa para o PP —primeiro partido da história espanhola a ser condenado por corrupção.
Em 2018, o então chefe do Executivo, Mariano Rajoy (PP), teve que ir a público pedir perdão "a todos os espanhóis". Ele saiu de cena em junho do mesmo ano após uma moção de censura do Parlamento, deixando o lugar para Sánchez, atual primeiro-ministro.
Uma frase de Rajoy ficou famosa na época. Em mensagem de texto ao ex-tesoureiro do PP, logo após este ser imputado por suas escusas movimentações de muchos milhões de euros na Suíça em 2013, ele escreveu: "Luís, (...) seja forte".
Uma imagem na tevê me chamou a atenção ontem. Entre os cidadãos saindo às ruas espavoridos, vestidos tipo filme do ET apocalíptico, a reportagem mostrava um flagra noturno tomado de um helicóptero numa praia na Galícia. Homens foram surpreendidos descarregando pacotes de alguma droga de um barco, os torsos nus, as calças enroladas até os joelhos —mas bem protegidos do vírus. "Até o narcotráfico está usando máscaras e luvas!", exclamava a voz em off, quase que aprovadoramente. Muito bem, sejamos fortes.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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