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Diário de confinamento: 'O ídolo pop e as amêndoas'

Epidemiologista que se tornou personagem número 1 da crise na Espanha inspirou memes

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Barcelona

Dia #99 – Sábado, 20 de junho. Cena: este é o penúltimo texto do Diário, e eu quero um abraço vocês não?

A pandemia espanhola tem uma figura pop máxima. Acusado de omitir dados ou endeusado como o salvador da pátria, já virou 1.340.758 memes, camiseta, grafite, bandeira, chaveiro e até bonequinho 3D.

Um jovem valenciano (seguramente há mais gente) tatuou sua cara numa coxa com a inscrição: MESTRE.

Fernando Simón, epidemiologista e chefe do Centro de Coordenação de Alertas e Emergências Sanitárias do Ministério da Saúde espanhol, foi e segue sendo nosso personagem número 1 da crise, o "commander-in-chief", o cara que a gente esperava ver todos os dias na tevê —sim, ele aparecia todos os dias em cadeia nacional pra atualizar os dados, confortar os ciudadanos e analisar a situêition.

Foi nosso hermano-camarada, mais do que o próprio chefe do Executivo, Pedro Sánchez, ou o ministro da Saúde, Salvador Illa, dois outros personagens assíduos das transmissões nacionais.

Fernando Simón, diretor do CCAES, durante entrevista coletiva em Madri - Borja Puig de la Bellacasa/Governo da Espanha/AFP

Depois de quase cem dias de muita tensão e blablabla, sua voz, por natureza rouca, se transformou num fiapo por vezes quase incompreensível. Muitas entrevistas coletivas, muita explicação. Haja saliva, paciência, dedicação —penso.

Com seus distintos olhos azuis e fartas sobrancelhas grisalhas que lhe dão um ar duendil, mais um outfit composto de agasalhos e camisas simples, contrastando com a unanimidade política do terninho, Simón segue aí desde a crise do ebola, em 2014 (quando já estava à frente do Centro), inadvertidamente fornecendo material aos internautas que criam memes e músicas sobre ele.

Dois dos hits de internet mais conhecidos reproduzem ou fazem alusão a célebres frases simonianas como "hoje não comi amêndoas, por via das dúvidas" (na era da #tossefobia, Simón, que teve coronavírus e passou por quarentena em casa, foi obrigado a interromper um de seus pronunciamentos por conta de um ataque de tosse e se justificou dizendo que é porque tinha comido amêndoas "justo antes").

Um dos videoclipes-homenagem a Simón, meu preferido, é pura estética glitter Marcos Valle oitentista.

"Quero dormir aconchegado / entre tuas sobrancelhas e teu saber-estar", diz a letra, "e quando tudo isso passar / você voltará a tomar café tranquilo em um bar / muita gente vai te pedir selfies, e ainda que você seja tímido / buscará agradá-looo-ooos".

Com o fetiche público pela figura de Simón, começam a emergir até fotos antigas e anedotas. Como as de seu período como médico voluntário no Burundi e em outros países africanos, no início dos anos 1990.

Segundo um companheiro da época em depoimento recente, Simón, "um McGyver da medicina", fez das tripas corazón, por exemplo, pra levar adiante um projeto de detecção e educação relacionados à Aids, em laboratórios sem recursos e comunidades sem infraestrutura e com muitas dificuldades de todos os tipos.

Quando uma jornalista perguntou sua opinião sobre toda essa fama súbita, Simón disse que não o incomodava, embora ultimamente fosse mais difícil caminhar pela rua.

E, sobre as camisetas com sua cara: “Gostaria, se possível, já que minha imagem está aí… que se doasse uma pequena porcentagem desses benefícios a ONGs”.

Nem tudo são flores e tapete vermelho para Simón, claro. Uma polêmica investigação em curso com base em um relatório da Guarda Civil aponta seu nome em meio a inconsistências na gestão do princípio da crise, em março.

Naquela época, o Ministério da Saúde teria proibido um congresso evangélico “por motivos sanitários”, ao mesmo tempo em que permitiu as manifestações do Dia da Mulher, um comício do partido Vox e até uma partida de futebol com 60 mil espectadores poucos dias antes do estado de alarme, decretado no dia 14.

Recentemente, também foi arquivada uma acusação de "homicídio imprudente" feita por familiares de uma mulher que morreu por coronavírus.

Eles queriam imputar a Simón a responsabilidade pelas 28 mil mortes por Covid na Espanha, ao haver transmitido publicamente "uma série de diretrizes errôneas e contraditórias".

Em parte, é o preço da exposição. De dar a cara pra bater. Como estes textículos que ora lês (guardadas, bem guardadas, as proporções), os quais ao longo de quase cem dias estive aqui laboriosa y amorosamente criando, numa tentativa de contribuir um micromol para a navegação desse aturdimento mundial que, ainda que em estágios e condições distintas, estamos todos vivendo.

Obrigada aos muitos que me encontram pela vida e na internerd e me saúdam, compartilhando histórias, sonhos e preocupações em um momento tão delicado como este. É sobretudo pra vocês que escrevo.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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