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Diário de confinamento: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'

O minuto de silêncio, homenagem a vítimas de guerra, me pegou desprevenida no supermercado

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Barcelona

Dia #75 – Quarta, 27 de maio. Cena: “No hay banda, no hay orquestra” ("Cidade dos Sonhos", David Lynch).

Não vou negar, passei certa vergonhinha hoje no supermercado.

Na fila, eu levava meu aipo e um chocolate na mão (hay que desfrutar sin perder la linha jamás). Chegou a minha vez e, pra meu espanto, todos os caixas e demais funcionários saíram de seus postos e se enfileiraram na entrada, entre algumas risadinhas e checadas no celular.

Olhei à volta. Os clientes haviam desacelerado o passo, alguns inspecionavam o chão, outros observavam a cena, passivos. Todos emudecidos.

em uma praça, pessoas máscaras estão paradas. Uma delas segura uma bandeira com as cores da Espanha, vermelho e amarelo
Espanhóis prestam minuto de silêncio à vítimas da Covid-19 em na Praça Puerta del Sol, em Madri - Sergio Perez - 26.mai.20/Reuters

Devia ser o sol, a fome, a manhã inteira no hospital, mas tive um cinco-minutos. Em meio ao enigmático silêncio tipo placa vítrea preservando-nos em âmbar —"ei, alguém pode me explicar o que está acontecendo?".

"É o minuto de silêncio", me explica um funcionário de camiseta polo cinza e viseira de plástico anos 80.

Me encolhi ao lado do display de chicletes e também preguei meus olhos no chão. De fato, no meu afã de seguir a vida, meus desejos particulares, a perfeita arquitetura da Minha Quarta-Feira, esqueci de olhar a hora: era meio-dia.

Hoje é o primeiro dos dez dias de luto oficial decretado em todo o país pelas 27.117 vítimas oficiais (além das que estão sendo investigadas) da Covid-19 na Espanha.

O minuto de silêncio. Que gesto tão singelo e tão poderoso. Tão contra o fluxo imparável e individualizante de cada dia, nossa dança formiguística. A sensação de comunhão no silêncio. A impaciência de que o tal minuto passe logo. Cada um com seu cada qual.

A ideia, é compreensível, remonta aos tempos de guerra. Mais exatamente, diz uma das versões modernas, teria nascido nos estertores da Primeira Guerra Mundial.

Diante da catártica celebração da vitória dos Aliados nas ruas de Londres, em 11 de novembro de 1918, o jornalista australiano Edward Honey, que havia servido até 1915 nas forças britânicas e depois ficou por ali jornalistando, olhou à volta e pensou (algo como): gente, o que acaba de acontecer é muito sério. Contemplemos, meditemos, recordemos.

Seus pensamentos foram publicados em 1919 no London Evening News. “Eu pediria apenas (…) cinco minutos silenciosos de lembrança nacional”, escreveu. “Uma intervenção muito sagrada. Comunhão com os mortos gloriosos que nos conquistaram a paz; e, da comunhão, força renovada, esperança e fé no amanhã.”

Silêncio, esse instrumento litúrgico antigo que nos une por fios invisíveis, emanando das beiradinhas da consciência.

A ideia foi implementada no Remembrance Day do ano seguinte, em 1919, na esteira do Dia do Armistício original, após ser evocada pelo autor e político sul-africano Sir James Percy FitzPatrick a alguém da equipe do rei George 5º (a propósito, uma segunda teoria vincula a origem do minuto de silêncio ao pós-guerra na África do Sul). Acharam cinco minutos muito, transformaram em dois.

Até hoje, em todos os territórios da Commonwealth, o Remembrance Day, Dia da Lembrança, é marcado por dois minutos de silêncio às 11h.

Honey sugeria cinco minutos, o rei George 5º transformou em dois, e nós, em 2020, nos contentamos com um minuto. Ao final do qual eu saía com meu aipo, e o caixa do supermercado, visivelmente impaciente, pegava de novo seu celular para responder alguma mensagem, talvez, urgente, emitida das profundezas de uma supernova.

“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.

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