Dia #32 – Barcelona – Terça, 14 de abril. Cena: Tudo cá cá cá, na fé fé fé / No bu bu li li, no bu bu li lindo....
Aqui, 32° dia de confinamento domiciliar, o horário comercial da tevê segue quase como sempre, com aquele voluptuoso desfile monocórdio, amortecedor-de-sentidos de Coisas a Consumir, Marcas a Amar, Crise a Esquecer etc etc. Vida mantequilla.
Exceto por um detalhe: todos os cenários agora levam ao lar. As campanhas —pode ser de loja de móveis, carro, banco, caldo de galinha, não importa— migraram quase todas para a vida indoors, mostram gente nas janelas em coreografia jovial de acenos solidários, as famílias em convívio fraternal, os casais acucurraditos nos sofás.
Enfim, publicidade. Sempre mostrando a galinha mais dourada, o texto mais lacrimoso, a gente mais feliz. Em casa.
As mensagens agora terminam com um moralmente obrigatório #quédateencasa ou 'nós ficamos em casa', e com qualquer outro gancho visual-textual que possa estabelecer um vínculo, uma conexão, uma ponte com o corazón algo cansado do público confinado.
Os números de mortos vão se estabilizando, e a volta parcial ao trabalho nesta semana dá a ilusão de que o pior já passou.
Epidemiologistas e analistas vários, porém, vão alertando para a necessidade de manter medidas de segurança, sob pena de vivermos uma segunda onda de contágios. O problema mais urgente é disponibilizar mais testes. Porque o número oficial de contágios é uma lenda urbana.
A solidariedade se vê pelos números, já que a maioria de nós ainda não pode sair às ruas. Uma olhada básica em gofundme, página de crowdfunding, me surpreende: não são poucos os projetos sociais de apoio à crise que completaram suas metas de doações ou, inclusive, superaram.
Os que mais abundam e têm mais ibope são os projetos de apoio direto a hospitais, seja com material sanitário ou ajuda financeira às equipes e cuidado dos pacientes. Outros, como projetos de pesquisa e sociais, têm scores variados. E há ainda propostas como construção de respiradores ou um fundo de emergência para trabalhadoras sexuais, lançado por um coletivo que reúne diferentes cidades (14.759 euros doados, dos 12 mil euros de meta inicial, o que equivale a R$ 84 mil, da meta de pouco mais de R$ 68 mil).
Do outro lado do coração español, o noticiário do dia mostra diferentes exemplos de hostilidade por parte de vizinhos a profissionais que seguem trabalhando durante a crise, como enfermeiros, médicos e funcionários de supermercados.
Uma caixa de supermercado de Cartagena teve a seguinte mensagem anônima colada em sua porta: “queremos pedir a você pelo bem de todos que busque outra casa enquanto isso dure (…). Não queremos riscos. Gracias”. Ela escreveu de volta: “menos aplausos às 20h e um pouco mais de empatia pelas pessoas que temos que trabalhar e temos família”. Outra médica amanheceu com a porta de casa “pichada” de água sanitária e sabão.
Alguns profissionais de saúde contaminados com coronavírus durante o trabalho desabafam em rede nacional: rejeitados pelos vizinhos ou pelos próprios companheiros de apartamento, são obrigados a dormir em carros ou buscar algum dos hotéis especiais realocados para a crise.
São exceções, mas doem na fábula imaculada de solidariedade que a nação (e a propaganda) está arduamente tentando construir.
Assim como dói ver as imagens reiteradas do ex-premiê Mariano Rajoy, destituído em 2018 após um escândalo de corrupção envolvendo seu partido, o PP (Partido Popular, atualmente no comando da oposição), fazendo jogging na rua vazia, do lado de sua casa avaliada em 1,5 milhão de euros (R$ 5,7 mi) no bairro ultraburguês de Aravaca, em Madri, com seus tênis azul royal e reloginho conta-calorias. Como se não fosse com ele. Como se não fosse com todos nós.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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