Dia #75 – Quarta, 27 de maio. Cena: “No hay banda, no hay orquestra” ("Cidade dos Sonhos", David Lynch).
Não vou negar, passei certa vergonhinha hoje no supermercado.
Na fila, eu levava meu aipo e um chocolate na mão (hay que desfrutar sin perder la linha jamás). Chegou a minha vez e, pra meu espanto, todos os caixas e demais funcionários saíram de seus postos e se enfileiraram na entrada, entre algumas risadinhas e checadas no celular.
Olhei à volta. Os clientes haviam desacelerado o passo, alguns inspecionavam o chão, outros observavam a cena, passivos. Todos emudecidos.
Devia ser o sol, a fome, a manhã inteira no hospital, mas tive um cinco-minutos. Em meio ao enigmático silêncio tipo placa vítrea preservando-nos em âmbar —"ei, alguém pode me explicar o que está acontecendo?".
"É o minuto de silêncio", me explica um funcionário de camiseta polo cinza e viseira de plástico anos 80.
Me encolhi ao lado do display de chicletes e também preguei meus olhos no chão. De fato, no meu afã de seguir a vida, meus desejos particulares, a perfeita arquitetura da Minha Quarta-Feira, esqueci de olhar a hora: era meio-dia.
Hoje é o primeiro dos dez dias de luto oficial decretado em todo o país pelas 27.117 vítimas oficiais (além das que estão sendo investigadas) da Covid-19 na Espanha.
O minuto de silêncio. Que gesto tão singelo e tão poderoso. Tão contra o fluxo imparável e individualizante de cada dia, nossa dança formiguística. A sensação de comunhão no silêncio. A impaciência de que o tal minuto passe logo. Cada um com seu cada qual.
A ideia, é compreensível, remonta aos tempos de guerra. Mais exatamente, diz uma das versões modernas, teria nascido nos estertores da Primeira Guerra Mundial.
Diante da catártica celebração da vitória dos Aliados nas ruas de Londres, em 11 de novembro de 1918, o jornalista australiano Edward Honey, que havia servido até 1915 nas forças britânicas e depois ficou por ali jornalistando, olhou à volta e pensou (algo como): gente, o que acaba de acontecer é muito sério. Contemplemos, meditemos, recordemos.
Seus pensamentos foram publicados em 1919 no London Evening News. “Eu pediria apenas (…) cinco minutos silenciosos de lembrança nacional”, escreveu. “Uma intervenção muito sagrada. Comunhão com os mortos gloriosos que nos conquistaram a paz; e, da comunhão, força renovada, esperança e fé no amanhã.”
Silêncio, esse instrumento litúrgico antigo que nos une por fios invisíveis, emanando das beiradinhas da consciência.
A ideia foi implementada no Remembrance Day do ano seguinte, em 1919, na esteira do Dia do Armistício original, após ser evocada pelo autor e político sul-africano Sir James Percy FitzPatrick a alguém da equipe do rei George 5º (a propósito, uma segunda teoria vincula a origem do minuto de silêncio ao pós-guerra na África do Sul). Acharam cinco minutos muito, transformaram em dois.
Até hoje, em todos os territórios da Commonwealth, o Remembrance Day, Dia da Lembrança, é marcado por dois minutos de silêncio às 11h.
Honey sugeria cinco minutos, o rei George 5º transformou em dois, e nós, em 2020, nos contentamos com um minuto. Ao final do qual eu saía com meu aipo, e o caixa do supermercado, visivelmente impaciente, pegava de novo seu celular para responder alguma mensagem, talvez, urgente, emitida das profundezas de uma supernova.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
DIÁRIO DE CONFINAMENTO
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Dia 1: 'Não estamos de férias, mas em estado de alarme'
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Dia 2: 'Teste, só para pacientes internados'
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Dia 3: 'A vida vista de cima'
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Dia 4: 'Panelaço contra o rei'
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Dia 5: 'O perigo mora em casa'
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Dia 6: 'Solidariedade em tempos de vírus'
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Dia 7: 'O lado utópico da crise'
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Dia 8: 'O canto dos pássaros urbanos'
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Dia 9: 'Os de baixo ficam sem banquete'
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Dia 10: 'Essa desproteção vai cobrar fatura'
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Dia 11: 'Se não estamos no pico, estamos muito próximos'
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Dia 12: 'Tensão cresce em diferentes setores'
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Dia 13: 'Único tratamento agora é a disciplina'
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Dia 14: 'Os domingos são como segundas, e as segundas como domingos'
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Dia 15: 'Cada incursão ao exterior é uma operação de guerra'
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Dia 16: 'Começam a proliferar os vigilantes da lei entre os cidadãos'
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Dia 17: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 18: 'Tem chovido muito nestes dias em Barcelona'
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Dia 19: 'A vida vai registrando uma sucessão de recordes negativos'
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Dia 20: 'Come chocolates, pequena'
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Dia 21: 'Com avanço da crise, aumentam a tensão e as divergências'
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Dia 22: 'Separados por confinamento, casais marcam encontro no supermercado'
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Dia 23: 'Independentemente da duração, todos sabemos o que é uma quarentena'
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Dia 24: 'A manhã começou com um tutorial japonês maravilhoso sobre tofu'
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Dia 25: 'Espanha testará 30 mil famílias'
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Dia 26: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
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Dia 27: 'Perspectiva é de que quarentena tenha prorrogação-da-prorrogação'
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Dia 28: 'E eu, sou não-essencial?'
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Dia 29: 'Qual é a importância das pequenas coisas?'
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Dia 30: 'Após um mês, os espanhóis (alguns) voltam às ruas'
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Dia 31: 'Não há ninguém para colher cerejas'
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Dia 32: 'Queremos pedir que você busque outra casa'
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Dia 33: 'Sobre política e pardais'
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Dia 34: 'As mandíbulas de Salvador Dalí'
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Dia 35: 'Escola, só no ano que vem'
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Dia 36: 'A Nova Normalidade'
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Dia 37: 'A dor é temporária; o orgulho é para sempre'
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Dia 38: 'O início da reconstrução'
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Dia 39: 'O elaborado ritual do passeio em família'
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Dia 40: 'A cidade mascarada'
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Dia 41: 'Um Dia dos Namorados diferente'
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Dia 42: 'Sair, sim, mas com separação de brinquedos'
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Dia 43: 'Tínhamos que tomar decisões duras e rápidas'
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Dia 44: 'A cidade das crianças'
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Dia 45: 'Isso não acabou'
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Dia 46: 'Quatro etapas para o verão'
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Dia 47: 'As piedras no caminho'
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Dia 48: 'O jeito luso'
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Dia 49: 'As novas regras do rolê'
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Dia 50: 'Sobre crânios e crises'
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Dia 51: 'Um dia inesquecível'
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Dia 52: 'Começa o descofinamento'
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Dia 53: 'O comandante e as ovelhas'
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Dia 54: 'Confinados por um fio'
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Dia 55: 'O calor e o jogo do contente'
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Dia 56: 'A Barcelona de mil caras'
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Dia 57: 'Redescobrindo o amor'
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Dia 58: 'Espanha avança pela metade'
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Dia 59: 'O voo da discórdia'
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Dia 60: 'O ano que não houve'
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Dia 61: 'Passando de fase'
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Dia 62: 'Sobre manifestações e cabeleireiros'
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Dia 63: 'San Isidro com flores e máscaras'
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Dia 64: 'Dá medo, medinho, medaço'
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Dia 65: 'Máscaras e luvas jogadas na rua'
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Dia 66: 'Quentinhas de luxo'
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Dia 67: 'Brasil para espanhol ver'
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Dia 68: 'Parecia Copacabana'
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Dia 69: 'O passinho do lagarto'
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Dia 70: 'As pessoas meio que gritam entre si'
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Dia 71: 'O augúrio chinês'
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Dia 72: 'Estamos enlouquecendo?'
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Dia 73: 'Nazaré confusa e fila pra cerveja'
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Dia 74: 'Enquanto julho não vem'
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Dia 75: 'Contemplemos, meditemos, recordemos'
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Dia 76: 'A fábula do terrorista e da marquesa'
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Dia 77: 'O informe da discórdia'
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Dia 78: 'Lições da cólera em tempos de coronavírus'
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Dia 79: 'Nos deram um pouco de liberdade e agimos como se o vírus não existisse'
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Dia 80: 'Sem pressa, mas sem pausa'
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Dia 81: 'Botellones, a nova discoteca pós-Covid'
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Dia 82: 'Pandemia, crise e racismo'
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Dia 83: 'Sair da UTI para ver o mar'
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Dia 84: 'A senhora deu positivo e deve se isolar imediatamente'
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Dia 85: 'A verdade é que é uma incerteza para todos'
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Dia 86: 'A cultura de bar na Espanha é expressiva'
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Dia 87: 'Todo cuidado é pouco e, inclusive, pode não ser suficiente'
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Dia 88: 'O vírus segue sendo uma ameaça'
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Dia 89: 'O fogo que nunca se apaga'
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Dia 90: 'Uma bolha, uma família'
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Dia 91: 'Músicos do mundinho, uni-vos'
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Dia 92: 'Como um clube de jazz dos anos 1930'
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Dia 93: 'Dinheiro pode estar com os dias contados no pós-pandemia espanhol'
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Dia 94: 'Uma vida de mil e uma regrinhas'
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Dia 95: 'Cada dia, ao chegar em casa, me isolava da minha família'
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Dia 96: 'Abraços, mesmo que de plástico'
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Dia 97: 'Em casa com o agressor'
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Dia 98: 'Já vivemos como podemos, e não há mais'
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Dia 99: 'O ídolo pop e as amêndoas'
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