Diário de confinamento: 'Hoje deu vontade de ver o mar'
Número de aviões que cruzam o céu de Barcelona despencou durante a pandemia
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Dia #26 – Barcelona – Quarta, 8 de abril. Cena: que falta faz um abraço.
O número de falecidos diários na Espanha segue o ritmo de ligeiro aumento do início da semana: 757, contra 743 no dia anterior.
As análises sobre a progressão dos casos no país, porém, sugerem que seguimos a tendência de estabilização, embora o próprio Ministério da Saúde admita que mais de 90% dos casos positivos podem seguir ocultos no momento —elevando a cifra potencial de infectados dos oficiais 146.690 de hoje para quase 1,5 milhão.
O assunto me lembra papo de dieta. No começo do confinamento na Espanha, como ocorreu em outros países, a diminuição no ritmo de expansão da epidemia foi rápida e dramática; agora que a gente já cortou as gorduras iniciais, toca insistir e manter a moral pra se adaptar aos resultados mais modestos e lentos.
Claro, essa é a visão contemplativa ou passiva da questão. A que poderia levar um avô hipotético num povoado andaluz imaginário a dizer, conformado: “Es lo que hay”, dando de ombros e assobiando uma bulería.
Já os diversos aspectos da gestão da crise que podem influenciar no processo de desaceleração de casos (de distribuição de testes a ingerências para remediar o "parón" econômico) é motivo de mucha, mucha discussão.
Eu aqui, afortunada-desafortunada confinada com casa-roupa-comida, começo a me acostumar com a vida versão redux. Acho que inclusive na hora de voltar pra rua vai me dar um 'bajón' —vulgo uma deprê com uns toques de agorafobia (medo de sair de casa) e fobia social.
Já sinto essa ressaca existencial na hora de levar minha cara mascarada pra rua pela subsistência. Ontem, a fila para o supermercado perto de casa tinha o comprimento de 100 cotovelos meus (estimei, enquanto esperava —ah, os cantos escuros da pequena alma...); foi chegando a minha vez, e eu pensei: mercado é o c*, vou na quitanda, que tá vazia.
O que é um ser humano nas breves andanças do confinado? Um obstáculo a evitar.
Falando em paranoias: vocês já tinham ouvido falar de aeronausifobia, o medo de vomitar durante um voo de avião? Sim, tô olhando a majestosa wikilista de fobias (ah, avião... aquele busão aéreo das antigas, quando a gente fazia um negócio chamado viajar).
Pois isso me lembra uma observação do meu fatídico companheiro de quarentena. Outro dia, contemplávamos o horizonte silencioso do skyline barcelonês no terraço de casa (onde mais) quando ele soltou: "já percebeu que o céu tá azul? E sem rastros de aviões".
Os rastros de aviões são parte inelutável da cultura celeste de Barcelona, essa cidade turística, hub/agremiação internacional de gente sedenta por lazer-praia-calor-vida-louca-vida, cujos céus chegam a receber até 230 mil voos num único dia de verão, gerando um emaranhado apocalíptico etéreo-mas-constante de traços brancos sobre o azul mediterrâneo.
Esta cidade é meu lar e, sim, é bonita. Mas, como muitos moradores, eu já estava começando a ficar saturada de tantos turistas saindo de bueiros/conexõestigre/airbnb/becos/bares de tapas/souvenirs de I-love-Barcelona —até que começou o confinamento e todo mundo basicamente de-sa-pa-re-ceu (com exceção honorável dos cerca de mil turistas que seguem cativos na cidade).
Segundo o app sueco FlightRadar24, que mostra os voos de todo o mundo em tempo real a partir da compilação de dados de diversas fontes, houve uma queda de 55,7% no tráfego aéreo global na última semana de março. O período coincide com a radicalização de medidas confinatórias em diferentes países.
Com a súbita deserção aérea, desapareceram de Barcelona as típicas trilhas aladas de aeronaves, que nos faziam erguer os olhos pro azul e pensar desaprovadoramente em poluição ou (alguns) em mensagens extraterrestres e outras teorias conspiratórias.
Segundo a mais famosa delas, a dos chemtrails, os rastros de vapor d'água deixados pelos aviões seriam na realidade resultado da pulverização de agentes químicos e biológicos, destinados a controlar o clima planetário ou a destruir o ambiente.
Elucubrações vespertinas à parte, hoje deu vontade de ver o mar. Está a exatos 4,5 quilômetros de casa, perto, nada, tudo. As andorinhas estão chegando da África, pouco a pouco, prelúdio delicado do verão. Lembro do personagem tetraplégico de Javier Bardem em "Mar Adentro", filme bunito pra p## de Alejandro Amenábar: “Cuando me apetece, me concentro y doy un paseo hasta el mar, me voy volando...”.
“Músicas para Quarentenas” podem ser escutadas aqui.
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